Abertura Zemira

José Maurício Nunes Garcia

(1803)

Instrumentação: 2 flautas, 2 oboés, 2 clarinetes, 2 fagotes, 2 trompas, 2 trompetes, tímpanos, cordas.

 

O Rio de Janeiro despontava, desde o ano de sua elevação a capital do Brasil, em 1763, como uma das principais cidades brasileiras. Antes mesmo da chegada da corte de D. João VI, já vinha passando por uma série de transformações urbanas, com a construção do aqueduto (hoje Arcos da Lapa) e do Passeio Público. Foi nessa época que se inauguraram o teatro Ópera Nova (1776) e a Irmandade de Santa Cecília, a qual, fundada em 1884, constituiu-se numa das mais importantes fomentadoras da música no Rio de Janeiro, de que José Maurício fez parte desde tenra idade.

 

Porém, com a chegada da família real em 1808, as transformações e o incremento da vida política, social e cultural se desenvolveram de modo vertiginoso para a época, como a fundação da Capela e do Teatro Real e a vinda de cantores e instrumentistas. Não apenas o aparelho burocrático-administrativo, mas também aparelhos de representação cultural (como orquestras, coros e castrati) foram transladados à cidade do Rio de Janeiro, dando-lhe uma vitalidade musical jamais vista; ao lado disso, a transferência da corte acelerou as discussões que culminaram com o retorno de João VI para Portugal em 1821 e com a independência do Brasil em 1822.

 

José Maurício Nunes Garcia, filho de pai e mãe alforriados, teve de enfrentar desde cedo as contradições de uma ascendência negra em um período escravocrata. Estudou música com Salvador José de Almeida e Faria e, aos vinte e seis anos, já desponta como profissional, tornando-se Mestre de Capela da Sé e Catedral do Rio de Janeiro. Aos trinta e um anos, com a chegada da família real, é nomeado Mestre da Real Capela.

 

Sua produção é hegemonicamente religiosa. Porém, obras de caráter secular, sempre ligadas a um viés dramático, fazem parte de sua criação. A Abertura Zemira, composta cinco anos antes da transferência da corte, insere-se nesse sofisticado leque. A Abertura, como gênero musical autônomo, ocorre a partir da segunda metade do século XVIII. Nesse sentido, a obra em questão, em estilo clássico, confirma a intimidade de José Maurício com a música de concerto praticada na sua época, mesmo antes da vinda da corte.

 

Zemira está estruturada em forma sonata com dois grupos temáticos: o primeiro inicia-se com sugestões de trovões – as notas repetidas em uníssono e o trêmulo no registro grave – até a entrada do grupo de notas rápidas em direção ao agudo, intercaladas nos violinos e flautas, sugerindo rajadas de ventos, sobretudo pelos timbres das madeiras. O segundo grupo, apresentado nos violinos, em contraste ao primeiro, tem caráter jocoso, leve, intercalado com os efeitos de trovoadas, acentuando a dramaticidade da peça. Em seguida, os dois temas são combinados e desenvolvidos, intensificando-se, até que uma tempestade com trovões, raios e vendaval seja sugerida. Perto do final, uma melodia cantabile dos violinos e fagote é seguida de uma sugestão de galope, em direção aos acordes finais, recuperando o tema jocoso, como se tudo não passasse de um leve divertimento musical.

 

Edilson Vicente de Lima
Doutor em Musicologia pela USP, Mestre em Artes pela Unesp, professor na Universidade Federal de Ouro Preto.

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