Noites nos jardins de Espanha

Manuel de Falla

(1915)

 

Andaluz por parte de pai e catalão pelo lado materno, Manuel de Falla, nascido em Cádiz, desde criança familiarizou-se com a música folclórica espanhola na sua forma mais genuinamente popular, cotidiana. Sua vocação musical consolidou-se com as primeiras lições de piano e a audição frequente do oratório de Haydn As sete palavras de Cristo, obra-prima que, curiosamente, o mestre austríaco compôs especificamente para a catedral de Cádiz.

 

Na Real Academia de Madrid, Falla estuda com o grande musicólogo Felipe Pedrell, mestre de Albéniz (1860 – 1909) e de Granados (1867 – 1916). Em 1905, ganha importante prêmio pela ópera La vida breve e, dois anos depois, sua carreira de compositor tomará o rumo definitivo, quando se transfere para Paris, onde permanecerá até 1914.

 

Na capital francesa Falla apresenta sua ópera para Paul Dukas que, entusiasmado e generoso, torna-se seu professor particular de instrumentação e abre-lhe as portas do cenário vanguardista parisiense. O jovem compositor faz assim amizade com seus compatriotas Picasso e Albéniz, com Ravel e Debussy (que admirava especialmente). Nesse ambiente efervescente, apesar de seu temperamento discreto, da sincera modéstia e extrema discrição, Falla triunfará pela originalidade e excelência de sua música. Nela, o compositor celebra a Espanha, com uma profusão de motivos e ritmos fulgurantes – o fandango andaluz, a seguidilla, boleros, toadas murcianas, sevillanas e a farruca típica do estilo flamenco –, mas sua abordagem do folclore revela-se comprometida e atualizada com as renovações musicais do começo do século XX e mantém intacto irresistível apelo universal.

 

Falla começou a composição de Noches en los Jardines de España em Paris (1911), mas as crescentes exigências que impôs a si próprio dificultaram o término da obra, que só foi concluída em 1915, em Barcelona.

 

Apesar da divisão tripartida, não se trata de um concerto para piano e orquestra. O piano não é solista e muito menos concertante, apenas um instrumento mais destacado da orquestra. Quanto à técnica pianística, sua escrita é bastante inovadora (evidentemente inspirada nos recursos da guitarra espanhola) e se desenvolve fluentemente, como que entregue a uma improvisação incessante.

 

A obra não procura ser descritiva. Embora as peças tenham títulos e duas mencionem paisagens andaluzas, as três impressões sinfônicas são pura emoção musical:

En el Generalife (Allegretto tranquillo e misterioso) faz referência ao castelo medieval dos reis mouros em Granada, cujos jardins, em terraços, dão para a fortaleza da Alhambra e suas fontes. Há na partitura inflexões orientais, com o piano desenhando formosos arabescos sobre o prodigioso fundo orquestral, como para lembrar que a Espanha foi (e ainda é) o ponto mais ocidental do Oriente.

Danza lejana (Allegretto giusto) apresenta uma constante figura rítmica de dança cigana e sugere os rumores das águas da Alhambra. A orquestração estabelece um jogo notável entre os sopros e as cordas. Após um momento de quietude, o movimento liga-se ao noturno final, sem pausa.

En los jardines de la Sierra de Córdoba (Vivo), em forma de rondó com estribilho, faz brilhar toda a orquestra, com destaque para as sonoridades cintilantes do triângulo e dos pratos. Na seção central (Allegro moderato) o piano tem um solo magnífico. Ao final, percebemos que fomos transportados a uma cidade da Serra Morena, em noite de festa, com a música confiada à magia de uma orquestra cigana.

 

Paulo Sérgio Malheiros dos Santos
Pianista, Doutor em Letras, Professor na UEMG, autor dos livros Músico, doce músico e O grão perfumado: Mário de Andrade e a arte do inacabado. Apresenta o programa semanal Recitais Brasileiros, pela Rádio Inconfidência.

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