|    27 ago 2020

Maestro indica “Sinfonia Patética” de Tchaikovsky

Tchaikovsky, Abbado e os jovens da Simón Bolívar

Tchaikovsky, Abbado e os jovens da Simón Bolívar

Por Fabio Mechetti

Tchaikovsky exemplifica um tipo de compositor que consegue ser nacional sem ser nacionalista. Quando escutamos sua música, não há dúvida de que estamos diante de alguém com uma profunda alma russa. Mas, com algumas exceções, a influência direta do folclore de sua terra natal não permeia sua música da mesma maneira que em vários de seus contemporâneos. A carga étnica presente nas obras de Mussorgsky, Korsakov, Glinka, por exemplo, é significativamente maior do que aquela encontrada nas obras de Tchaikovsky.

Ele representa mais o modelo de subjetivismo romântico, em que a expressão criativa tenta refletir os mais profundos sentimentos do criador, sejam eles de índole filosófica, estética ou biográfica. Sim, é verdade que encontramos referências diretas à sua herança russa em obras como O Quebra-nozes, a Abertura 1812 ou a sua Segunda Sinfonia. Mas é na força emotiva de seu Romeu e Julieta, da Francesca da Rimini ou de sua Sexta Sinfonia que experimentamos a expressão máxima da mente e da alma desse grande gênio da história da música.

Sua última sinfonia pode ser considerada como uma grande autobiografia, em que momentos de angústias abissais e incontroláveis frenesis se alternam constantemente. A instabilidade emocional, a insegurança pessoal e profissional que o levaram a tentar o suicídio e, eventualmente, à sua profunda depressão, formam a moldura de sua Sinfonia “Patética” (termo aqui entendido mais pelo seu lado apaixonado, emotivo, do que propriamente trágico ou doloroso). Essa melancolia é sentida desde seu início, quando um lúgubre solo de fagote introduz o material do primeiro movimento. Nossa experiência, como ouvintes e como intérpretes, nos carrega aos extremos da sensibilidade humana: o desconsolo, a fortuita esperança que, ao invés de nos levar a momentos de júbilo, só nos lembra da inconteste realidade mais pessimista.

A valsa utilizada no segundo movimento é uma proposta de otimismo, de uma breve reação à força sufocante do destino, ou apenas uma lembrança de que somos incapazes de escapar dele? Afinal, é uma valsa que soa como valsa, dança como valsa, mas, em seu tempo irregular (5/4), traz um óbvio desconforto que, ao invés de nos aliviar, nos estressa ainda mais.

O explosivo terceiro movimento, como uma marcha desenfreada (aparentemente descontrolada) nos leva à mais utópica euforia. A força rítmica e a orquestração brilhante convidam o público ao “proibido”, mas inevitável, aplauso antes do final de toda a Sinfonia.

Mas é no Adagio lamentoso do quarto movimento que o compositor revela o âmago contido, quase como uma premonição da morte que chegaria alguns meses mais tarde. Assim como no início da Sinfonia, o timbre do fagote domina o “colorido” que define o movimento. Ao final, a pulsação sincopada de um coração débil, na região mais grave da orquestra (contrabaixos), propõe a inevitabilidade da morte. Triste, sim, mas de uma genialidade indiscutível.

Existem vários exemplos no YouTube de execuções de grande qualidade. A minha escolha teve o intuito de mostrar aos ouvintes que, mesmo uma obra profundamente triste e que fala de assuntos aparentemente incapazes de ser totalmente compreendidos pelas gerações mais jovens, pode ser perfeitamente interpretada por uma orquestra jovem nas mãos de um regente inspirado e inspirador. Trata-se da apresentação da Orquestra Sinfônica Simón Bolívar da Venezuela com o veterano e saudoso regente italiano Claudio Abbado. Há décadas que essa orquestra e o sistema que a criou vêm mostrando a força e importância da música e da cultura na formação social e intelectual de uma nação. El Sistema, como é mundialmente conhecido, foi capaz de oferecer, através de um projeto inteligentemente concebido, independentemente administrado, concentrado naquilo que o fazer musical melhor proporciona àqueles que o experimentam,  não somente uma forma de resgate social a jovens que de outra maneira estariam abandonados à sua própria sorte, mas também a realização artística que o levou a produzir centenas de músicos profissionais altamente qualificados (inclusive na nossa própria Orquestra) e, acima de tudo, de cidadãos que percebem na cultura o antídoto às eternas questões de desigualdade.

Que bom seria se pudéssemos, como brasileiros, aprender com esses exemplos bem-sucedidos e aplicá-los à nossa triste realidade.

 

Contentemo-nos, por ora, com este link:

A imagem deste post é uma pintura de Nikolai Kuznetsov, 1893

Posts relacionados