Choro para piano e orquestra

Camargo GUARNIERI

(1956)

Instrumentação: Piccolo, 2 flautas, 2 oboés, 2 clarinetes, 2 fagotes, 4 trompas, 2 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos, percussão, harpa, cordas.

 

O compositor paulista Mozart Camargo Guarnieri é reconhecido no cenário musical por seu interesse pelos aspectos nacionalistas na composição. No Brasil, no decorrer da primeira metade do século XX, a produção musical encontrava-se em processo de consolidação, destacando-se a atuação de compositores que enfatizavam, em suas obras, elementos diretamente ligados à cultura brasileira. A aspiração pela afirmação de um nacionalismo musical brasileiro já vinha sendo promovida desde o século XIX por compositores como Brasílio Itiberê da Cunha (1846-1913), Alberto Nepomuceno (1864-1920) e Alexandre Levy (1864-1892), considerados precursores do nacionalismo musical, movimento que se estendeu no decorrer do século XX e conquistou grande visibilidade com a participação de Villa-Lobos (1887-1959) na Semana de Arte Moderna, em 1922.

 

Nos períodos posteriores a essa Semana, protagonizada no campo musical por Villa-Lobos, surgiram outras gerações de músicos que se lançaram no âmbito da composição brasileira e alcançaram repercussão internacional, dentre eles, Camargo Guarnieri. A relação mais direta entre Guarnieri e o ideário do nacionalismo musical começou a ser tecida a partir de suas aulas com seus primeiros professores: Ernani Braga (1888-1948) e Sá Pereira (1888-1966). Ambos tendiam, claramente, a uma produção musical de cunho nacionalista, articulada a pesquisas realizadas sobre o acervo folclórico-cultural do Brasil.

 

Ernani Braga empenhou-se em recolher esse tipo de material para empregá-lo no repertório do canto coral, chegando a organizar concertos orfeônicos com cinco mil participantes. Postura similar foi promovida por Sá Pereira, que também associava o folclore ao canto coral.

 

O pensamento de Guarnieri, no decorrer de toda a sua trajetória, realça o comprometimento com o ideário nacional, aliando o nacionalismo estético, por integração dos elementos culturais, à adoção de inovações aduzidas da estética musical contemporânea. Guarnieri destacava, ainda, que o folclore brasileiro é um dos mais ricos do mundo, embora ele mesmo pouco tivesse adotado, diretamente, em sua obra, temas folclóricos brasileiros. Não deixava de incluir, porém, elementos marcantes do populário nacional, em que a referência aos elementos folclóricos não se efetiva de maneira explícita. Tais elementos são reelaborados e se tornam recriações do compositor, resultando em composições impregnadas de intenso e peculiar brasileirismo. Nessa conjuntura, as representações musicais tecidas por Guarnieri não se restringem a um perfil identitário nacional de cunho apologético, monolítico ou associado simplesmente a uma autenticidade respaldada pela suposição das origens. Guarnieri traduzia tal imaginário sociocultural na perspectiva de uma erudição e técnica apuradas.

 

Choro para piano e orquestra, escrito em 1956, recebeu o primeiro prêmio no Festival Latino-Americano de Caracas; foi dedicado ao pianista Arnaldo Estrella e executado em primeira audição no ano de 1957 pelo próprio Estrella, acompanhado pela Orquestra Sinfônica de São Paulo sob a regência de Souza Lima. Nessa obra, Guarnieri enfatiza o caráter nacional, denominando-a de Choro, ao mesmo tempo em que adota a estruturação usual dos concertos para instrumento solo e orquestra, geralmente compostos de três movimentos contrastantes.

 

Ao denominá-lo Choro, Guarnieri faz alusão tanto aos grupos instrumentais seresteiros urbanos, quanto ao gênero bastante explorado por diversos compositores brasileiros da música popular. Em seus três movimentos (Cômodo, Nostálgico, Alegre), evidencia-se uma estrutura rítmica referente aos temas originais criados pelo próprio compositor que, com grande refinamento, alia elementos repletos de brasilidade a uma escrita que privilegia elementos típicos da composição contemporânea, tais como o cromatismo e a bitonalidade.

 

No primeiro movimento, Cômodo, em caráter seresteiro, Guarnieri adota o princípio da variação temática. O piano dialoga com a orquestra, atingindo grande expressividade ressaltada pela dinâmica, do pianíssimo ao fortíssimo, para, em seguida, retomar a atmosfera intimista inicial, que encerra o Cômodo e prepara o movimento central, Nostálgico. Esse movimento, inspirado numa melancólica canção sertaneja, é marcado por uma atmosfera obscura provocada por harmonização expressiva e dinâmica muito suave. Uma sentida melodia é introduzida pelo clarinete e, em seguida, reafirmada e ampliada pelo piano. A parte central desse movimento atinge grande dramaticidade no discurso musical, pela densidade da massa orquestral, até voltar a acalmar-se com a retomada do tema inicial e a finalização por uma coda conduzida pelo piano. Já o terceiro movimento, Alegre, evoca o caráter dançante recorrente na música brasileira. Observa-se o predomínio de uma rítmica contundente, na qual o compositor reafirma humor e vivacidade por meio dos ritmos sincopados, e da ênfase na orquestração, que coloca em destaque os instrumentos de metal e percussão.

 

César Buscacio
Professor da Universidade Federal de Ouro Preto.

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