Don Quixote, op. 35

Richard STRAUSS

(1897)

Instrumentação: Piccolo, 2 flautas, 2 oboés, corne inglês, requinta, 2 clarinetes, clarone, 3 fagotes, contrafagote, 6 trompas, 3 trompetes, 3 trombones, 1 tuba, 1 eufônio, tímpanos, percussão, harpa, cordas.

 

O grande movimento literário, humanista e musical que, no século XIX, se traduziu no Romantismo abraça a liberdade como uma de suas causas primárias. Na música, o caminho para a livre expressão individual, aberto revolucionariamente por Beethoven, cria, por um lado, uma arte “confessional”, em que o compositor procura exprimir-se a si próprio e a seus estados emocionais e psicológicos, numa dinâmica que, embora não desprovida de certa tendência narcisista, acaba por criar linguagens distintas e infinitamente pessoais, açambarcadas por uma ideologia comum que esse ideal libertário engendra. Por outro lado, porém, o caminho aberto por Beethoven abre trilhas para novas perspectivas formais que, associadas à diretiva da expressão individual, nortearão grandes conquistas em diversos domínios da linguagem musical. Se a geração posterior a Beethoven (da qual Schubert talvez seja um dos maiores expoentes) ainda se sente receosa para trilhar em profundidade esses caminhos, a geração seguinte os elege franca e abertamente como vias arteriais, gerando obras como as de Mendelssohn, Schumann, Chopin e Liszt.

 

A História da Música não raro desconsidera a importância que tiveram a pessoa e a obra de Liszt na solidificação de novos gêneros e de novos posicionamentos, inclusive sociais, da música e do músico a partir do século XIX. Sua figura mitológica, em parte forjada por ele mesmo, parece ter eclipsado o valor de algumas de suas empresas artísticas mais relevantes: dentre elas, no campo da música sinfônica, senão a criação, a consolidação do poema sinfônico. Baseado sempre num enredo literário, esse gênero musical, embora tenha certamente algum fundamento narrativo, por assim dizer, está para além de meras “descrições” musicais, como se quer crer frequentemente. Ao contrário, o elemento literário, no poema sinfônico, tem a função de mote e de fio condutor para a livre expressão musical e criadora do compositor. Por isso mesmo, a sua liberdade formal em relação a modelos preestabelecidos (a exemplo da forma sonata) o coloca dentre os gêneros mais genuínos do Romantismo sinfônico: sua estabilidade formal não depende de receitas predeterminadas, mas tão somente da maior ou menor coesão e coerência internas que a obra logra porventura elaborar.

 

Foi com o poema sinfônico que, mesmo antes de empreender suas realizações tão significativas no campo da ópera, Richard Strauss conquistou renome internacional. São dessa mesma safra obras importantes como Macbeth (1886-1888), Don Juan (1888), Till Eulenspiegel (1894-1895) – obra de originalidade surpreendente – e Don Quixote, estreada em 1898.

 

Baseada sobre o célebre romance de Miguel de Cervantes, Strauss trabalha formalmente esse seu poema sinfônico utilizando-se de um processo de composição que se constitui de dez variações sobre um mesmo tema, seguidas de um finale. De fato, o compositor lhe confere um subtítulo: “Variações Fantásticas Sobre um Tema Cavalheiresco”. Ademais, endossando a liberdade criativa e formal que o poema sinfônico pressupõe, enquanto gênero, Strauss elabora, na obra, uma importante parte solista para o violoncelo, que representa o Cavaleiro da Triste Figura.

 

As variações se fundamentam em diversos aspectos e episódios do romance de Cervantes, o que relativiza, assim, a tendência narrativa inerente ao gênero: aspectos psicológicos da personagem adquirem musicalmente peso igual ao de eventos da narrativa que são evocados. Assim, por exemplo, a primeira variação tanto apresenta Dulcinéia como meta na mente confusa do fidalgo, quanto evoca a famosa batalha com os moinhos de vento.

 

No entanto, independentemente de maiores identificações descritivas relacionadas a elementos do texto de Cervantes (a vitória sobre o exército do Imperador Alifanfarrão, as considerações filosóficas do Quixote sobre a cavalaria andante, o ataque à procissão da Virgem, que o fidalgo cria ser uma donzela raptada, o embate com o Cavaleiro da Branca Lua, dentre outros eventos), a obra de Strauss garante a sua estabilidade em si mesma, tão somente pela sua coerência interna e pela sua arquitetura formal, que, calcada na liberdade criativa, atinge unidade e coerência musicais, apesar de fundamentadas em um argumento literário.

 

Moacyr Laterza Filho
Pianista e cravista, Mestre em Teoria da Literatura, Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa, professor da Fundação de Educação Artística e da Escola de Música da UEMG.

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