|    26 abr 2017

O Barroco na Alemanha

A música barroca alemã nos presenteou com Johann Sebastian Bach e Haendel. Trouxe-nos também outros compositores brilhantes, como Heinrich Biber, Buxtehude, Pachelbel e Telemann. Todos eles estão reunidos no terceiro capítulo dos nossos sábados Fora de Série, no dia 6 de maio, e são o assunto deste texto do pianista Paulo Sérgio Malheiros dos Santos.

por Paulo Sérgio Malheiros dos Santos *

 

A arte musical barroca abandonou, gradativamente, a textura polifônica de múltiplas vozes – criação gótica que atingira grande perfeição formal com os mestres renascentistas. Em busca de nova expressividade, o Barroco privilegiava uma linha melódica apoiada harmonicamente pelo baixo contínuo, que servia simultaneamente de acompanhamento, contraste e complemento a essa voz principal. Entretanto, a polifonia persistirá — sobretudo na música religiosa alemã – e alcançará um brilho prodigioso na obra de J. S. Bach.

 

Os compositores barrocos germânicos dedicaram-se intensamente à música sacra, sob o impulso decisivo dos denominados corais, cantos traduzidos do latim ou adaptados de canções populares, valorizados pela liturgia luterana a partir do século XVI. Os corais foram muito difundidos: em versões simples para uso dos fiéis amadores; ou em sofisticadas combinações vocais e instrumentais para profissionais, cujo trabalho se ampliou formalmente nas Cantatas e nas Paixões.

 

No século XVII, o jesuíta Athanasius Kircher publicou Musurgia Universalis, tratado sobre a Teoria dos Afetos, contemplando os aspectos pictóricos e sensoriais que assumiram grande importância como diretrizes da prática musical. Peças programáticas ou descritivas proliferavam. O boêmio Heinrich Biber, que trabalhou na Morávia e em Salzburgo, tinha particular interesse nesse tipo de composição: sua Sonata Representativa reproduz vozes de animais; as Sonatas do Rosário representam os quinze mistérios marianos; e a suíte Batalha apresenta realisticamente um acampamento militar.

 

Também possui evidente propósito programático a suíte Don Quixote, de Telemann. Quatro anos mais velho que seus amigos Bach e Haendel, ele era o mais célebre dos músicos alemães; e o mais pródigo, em uma época de compositores-artesãos prolíficos. Quarenta anos após a suíte Don Quixote, quando tinha oitenta anos, Telemann retomou o famoso personagem de Cervantes, desta vez em uma ópera.

 

O gênero operístico não encontrou terreno fértil nas cidades alemãs devastadas pela Guerra dos Trinta Anos. A organização musical do país privilegiava a música familiar (Hausmusik), a eclesiástica (Kirchenmusik) e a da corte (Hofmusik). O grande gênio alemão de óperas barrocas seria Haendel – mas ele trabalhou na Itália e na Inglaterra, onde conquistou ininterrupta glória. Il pastor fido foi sua segunda ópera inglesa (hoje, mais conhecida pela suíte que dela retirou o célebre maestro sir Thomas Beecham, criador da Royal Philharmonic Orchestra). A ópera alemã deveria aguardar o aparecimento de Gluck e de Mozart, na segunda metade do século XVIII.

 

Particularmente vigorosa é a produção germânica para o órgão, resultante da dupla influência da escola italiana de Frescobaldi e do holandês Jan Sweelink, herdeiro dos antigos virginalistas ingleses. Dois geniais compositores-organistas ligam-se particularmente à biografia bachiana: Pachelbel foi professor de Johann Christoph, irmão mais velho e tutor de Bach (pois esse ficou órfão ainda menino). Já o dinamarquês Dieterich Buxtehude, um dos representantes máximos da escola setentrional, imperava em Lübeck, quando, para ouvi-lo e aprimorar sua arte, o jovem Bach viajou mais de 350 quilômetros.

 

Os órgãos barrocos alemães possuíam vários registros que procuravam reproduzir as diferentes famílias instrumentais da orquestra. Essa preocupação tímbrica e a excelência do repertório organístico barroco vêm motivando compositores modernos – como o inglês Elgar e o mexicano Carlos Chávez – a orquestrar partituras escritas para o instrumento. Revestidas com a sonoridade das orquestras atuais, essas peças, geralmente confinadas ao espaço eclesiástico, têm seus limites originais ampliados para conquistar o público das grandes salas de concerto.

 

Bach, o maior dos compositores-organistas, elegeu a polifonia como meio predileto de expressão e, sob tal aspecto, sua obra vincula-se ao passado contrapontístico dos séculos anteriores. Entretanto, o idioma harmônico que empregou era extremamente progressista. Essa surpreendente fusão de contraponto e harmonia sinalizava caminhos inexplorados, cuja amplitude seus contemporâneos não souberam avaliar devidamente. Hoje, sua música é reverenciada como um dos grandes patrimônios da humanidade.

 

* Pianista, Doutor em Letras, professor na UEMG, autor dos livros Músico, doce músico e O grão perfumado – Mário de Andrade e a arte do inacabado. Apresenta o programa semanal Recitais Brasileiros, pela Rádio Inconfidência.

 

Para ampliar o conhecimento:

 

H. I. BIBER | Batalha

CD G. Muffat, Sonata II; H. BIBER, Battalia | Orquestra Barroca de la Universidad de Salamanca – Angel Sampedro, regente – Academia de Musica Antigua (Salamanca, Espanha – 1999)

CD H. Biber – Battalia; Requiem | La Capella Reial de Catalunya – Jordi Savall, regente (AliaVox, Espanha – 2002)

YouTube: Orquestra de Câmara da Noruega | Anthony Marwood, líder

 

BUXTEHUDE/Chávez | Chacona em mi menor

CD Danzón – Buxtehude/Chávez, Chacona em mi menor e outros | Simon Bolivar Symphony – Keri-Lynn Wilson, regente (Dorian Recordings – 1998)

YouTube: Orquestra Sinfônica Juvenil de Caracas | Dietrich Paredes, regente

 

PACHELBEL | Cânon e Giga

YouTube: Vozes da Música, de San Francisco

 

TELEMANN | Don Quixote

CD Don Quixote – Concertos and Suites by Telemann | Apollo’s Fire Baroque Orchestra – Jeannette Sorrell, regente (Koch Int’L Classics – 2005)

YouTube: Orquestra de Câmara de Hanover – Adam Kostecki, líder

 

HAENDEL/Beecham | Il pastor fido: Suíte

Beecham conducts Handel – Historic Recordings (1929-1940) – The Faithful Shepherd, Suite e outras | London Philharmonic Orchestra; London Symphony Orchestra (VAI Audio 1045, 1994/ Video Artists Int’l, 1995)

Romain Rolland – Vida de Haendel – Harold Paranhos, tradução (Atena Editora – 1958)

 

J. S. BACH/Elgar | Fantasia e fuga em dó menor

CD Bach – Orchestral transcriptions by Respighi and Elgar | Seattle Symphony Orchestra – Gerard Schwarz, regente (Naxos 8572741 – 2012)

Karl Geiringer – Johann Sebastian Bach, o apogeu de uma era – Álvaro Cabral, tradução (Jorge Zahar Editor – 1985)

YouTube: Orquestra Sinfônica da BBC – Andrew Davis, regente

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