Bela BARTÓK
Instrumentação: 2 piccolos, 3 flautas, 3 oboés, corne inglês, 3 clarinetes, requinta, clarone, 3 fagotes, contrafagote, 4 trompas, 3 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos, percussão, harpa, celesta, piano, órgão, cordas.
A primeira – e equivocada – imagem que se tem de Bartók é a de um compositor que buscou no folclore a base para a sua música e para a construção de uma linguagem musical vinculada a uma região específica da Europa Central. Há mesmo quem reclame para Bartók o papel de um dos fundadores da Etnomusicologia ou da Etnografia musical. Ele realizou, com seu amigo e colega, o também compositor Zoltan Kodály, um extensivo trabalho de coleta e registro de material musical tradicional de sua terra de origem (cujos limites, então, eram bem maiores do que hoje delimita mas fronteiras geográficas da Hungria). No entanto, esse trabalho, posto que permeie, em maior oumenor grau, seu trabalho de composição, nunca sobrepuja sua vigorosa capacidade criativa.
É curioso, por outro lado, notar como, mais ou menos na mesma época, compositores oriundos de realidades culturais e políticas totalmente diversas realizaram trabalhos semelhantes. Para citar alguns extremos, de um lado, Villa-Lobos no Brasil e Ginastera na Argentina, e, de outro, Manuel de Falla na Espanha e Gershwin nos Estados Unidos – também flertaram com a tradição musical ou a música popular de suas terras. Nem por isso se pode dizer que seus trabalhos tenham sido exatamente etnográficos. Ao que parece, todos eles fazem parte, quase inconscientemente, de um Zeitgeist, um espírito de época que buscava novas alternativas, fora dos grandes centros culturais, rejeitando certos vanguardismos academicistas. Essas alternativas encontraram, no Folclore ou nas expressões musicais populares, material sonoro suficientemente sólido para alicerçar linguagens individuais. Esse material, trabalhado de forma livre dos preconceitos tonais do século XIX, pôde oferecer a tais compositores um substrato essencial que, filtrado e destilado, se reduzia a um composto relativamente autônomo, capaz de nortear caminhos diferentes daqueles lançados pela Segunda Escola de Viena, por Debussy, ou mesmo por Stravinsky.
Não é, porém, que Bartók tenha se furtado a incorporar, em sua linguagem, conquistas importantes de tais correntes. O fato é que ele nunca se submeteu a elas e delas fez, junto com aquele trabalho peculiar com o Folclore, uma espécie de síntese: se frequentemente, em suas obras, esse material folclórico destilado parece estar presente, sem, no entanto, se impor à sua vontade criativa individual, muitas vezes seu método de composição parece, nas palavras de Eric Salzman, estar “a meio caminho entre certas técnicas tonais de Stravinsky e a construção serial mais altamente ordenada de Schoenberg”. Assim, Bartók consegue criar um universo sonoro original e próprio, fundamentado sobre diferentes técnicas e materiais que vão desde harmonias tonais, passando por modalismos extraídos da tradição musical húngara, e que chegam a cromatismos complexos e a um afastamento completo da tonalidade; usando elementos que se assemelham ao serialismo e explorando a percussividade e uma rítmica que adquire, em sua obra, papel significante. Todos esses recursos funcionam como ideias expressivas e estruturais, inteiramente compatíveis com as qualidades de sua própria capacidade de criação. Fundamental ainda, na linguagem bartokiana, é a relativização que ele faz dos papeis da harmonia e da melodia. Ambos os estratos são tratados, muitas vezes, na música de Bartók, com igual valor significativo. Assim, a harmonia frequentemente deixa de ser percebida ou tratada como uma derivação ou um suporte para a melodia: a relação entre ambas deixa de ser a de subordinação e passa a adotar um aspecto, ora contrapontístico, ora de entrelaçamento. Nota-se isso tanto em obras “menores” – como algumas das peças para piano – quanto em obras de maior envergadura, como o quarto Quarteto de Cordas.
Bartók compôs duas obras importantes para balé: O Príncipe de Madeira, estreado em Budapeste, em 1917, e O Mandarim Maravilhoso, composto entre 1918 e 1924 e estreado em Colônia (Alemanha), em 1926. Ambas pertencem a um período em que Bartók ainda se vê fascinado pela música de Debussy, que acabava de descobrir por intermédio de Kodály. Nesse período, ele e Kodály ainda se ocupam da pesquisa sobre a música tradicional e popular de sua terra, porém Bartók encontrou em Debussy e, posteriormente, em Stravinsky, dois modelos fundamentais para se afastar e mais tarde romper com um – já então caduco – Sistema Tonal hegemônico.
Embora frequentemente se queira ver no Mandarim Maravilhoso algo da presença do Stravinsky da Sagração, a obra vai para muito além das suas possíveis fontes e revela um compositor maduro o suficiente para empregar com ousadia uma variada gama de artifícios muitas vezes inusitados e extremamente originais. Dotado de uma orquestração exuberante, e pleno de novas investidas sonoras, o Mandarim Maravilhoso causou escândalo quando de sua estreia. Incorporado ao repertório sinfônico na forma de suíte orquestral (que conserva grande parte da versão original para balé), ele é uma obra que, com o Concerto para Orquestra (1944) e a Música para Cordas, Percussão e Celesta (1936), pode ser considerada emblemática desse grande nome da música do século XX.
Moacyr Laterza Filho
Pianista e cravista, Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa, professor da Universidade do Estado de Minas Gerais e da Fundação de Educação Artística.