Gustav MAHLER
Instrumentação: 2 flautas, 2 oboés, corne inglês, 2 clarinetes, 2 fagotes, contrafagote, 4 trompas, 2 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos, celesta, piano, harpa, cordas.
Gustav Mahler, como compositor de Lieder, inscreve-se na tradição romântica austro-germânica, no universo poético descortinado a partir das canções de Schubert e de Schumann. Como seus antecessores, mergulha, com sua música, nos sentidos do texto e subverte as características particulares dos domínios envolvidos: a linguagem musical parece dotada de conteúdo semântico e a obra revela a musicalidade da palavra. Nos Lieder com orquestra, essas características se evidenciam, de modo particular, através da paleta mahleriana, rica em matizes, contrastes, de uma inventividade que põe à prova a percepção do ouvinte. Nos Lieder, a orquestra também canta, dialoga com o poema; não acompanha apenas, como mera espectadora, mas participa do argumento literário. Nos Rückert Lieder, esse diálogo chega mesmo a se apresentar com um tratamento orquestral específico para cada peça. Isso se dá, sobretudo porque essas cinco canções não constituem um ciclo, como os Kindertotenlieder ou os Lieder eines fahrenden Gesellen, que propõem temáticas que lhes dão um sentido de unidade.
Blicke mir nicht in die Lieder é orquestrada para apenas alguns instrumentos de sopro – flauta, oboé, clarinete, fagote e trompa –, harpa e um naipe de cordas sem os contrabaixos. O texto adverte o leitor quanto à curiosidade acerca do ato criador: diante de um olhar incisivo, o poeta baixa os olhos, como se cometesse uma má ação. Rückert, ao falar da atividade das abelhas, faz uma metáfora acerca da criação, de seus misteriosos processos que, conduzidos pelo artista, por um impulso interior, quase como uma necessidade inata, consubstanciam-se na obra acabada. Mahler estrutura o Lied, tomando como fio condutor um ostinato em colcheias, entregue ao clarinete, ao fagote, aos segundos violinos, violas e violoncelos. Esse perpetuum mobile confere à obra, de início, certa inquietude e uma expressão de fugacidade, coroadas, ao final, por um gesto melódico ascendente – uma interrogação de sopros e cordas conduzida pela harpa.
Em Ich atmet’ einen linden Duft, entregue a violinos, com breves incursões pelas violas, o ostinato agora é todo suavidade. A árvore é a mesma tília que reconforta o caminhante nos Lieder eines fahrenden Gesellen, do próprio Mahler, ou na Winterreise de Schubert. A linha do canto, a evocar uma melodia schubertiana – ao contrário de algumas passagens do Lied anterior –, dialoga com o oboé e com a flauta e é secundada por uma orquestração que vai ao encontro da delicadeza do texto. Os mesmos sopros, as cordas reduzidas a violinos e violas, a harpa e, agora, a celesta, conferem ao todo leveza e brilho discreto – “perfume de ramo de tília, presente de alguém amado.
“Viver só, em meu céu, em meu amor, em meu canto”. As palavras finais – Himmel, Lieben, Lied – ecoam, lentamente, na frase em arco que conclui Ich bin der Welt abhanden gekommen. Nesse Lied não é apenas do tumulto do mundo que se refugia o poeta, em seu retiro ideal. Refugia-se também do destino humano, nessa obra que parece suspender a marcha inexorável do tempo. Desde a extensa introdução, pode-se estabelecer um paralelo com a melodia e com a atitude contemplativa do Adagietto da Quinta Sinfonia (1901/1902), contemporânea dos Rückert Lieder. A orquestração inclui sopros, agora sem a flauta – oboé, corne-inglês, dois clarinetes, dois fagotes e duas trompas –, harpa e cordas. Destacam-se os solos de corne-inglês, esse timbre nostálgico, como observou Berlioz em seu Tratado de Orquestração, caro aos românticos (Wagner, no Prelúdio do terceiro ato de Tristão e Isolda, e Berlioz, na Cena no campo, da Sinfonia Fantástica), cujo canto articula as três seções da canção e que, ao final, após recordar, secundado pelas cordas, a atmosfera do Adagietto, expira, serenamente.
A escolha do texto para o canto de amor de Liebst du um Schönheit, dedicado a Alma Mahler, retrata a hesitação do compositor em tomar como esposa a jovem, cerca de vinte anos mais nova que ele. O Lied evolui, ao longo das quatro estrofes do poema, com a voz buscando, gradativamente, através de frases ascendentes, pontos culminantes melódicos, que fazem lembrar o Träumerei, de Schumann. Em dois desses pontos, o tempo parece ficar suspenso – Frühling, ao final da segunda estrofe, e immer, ao final da quarta. À exceção da presença de dois oboés e de quatro trompas, a orquestra é a mesma de Ich bin der Welt abhanden gekommen. Ao final da canção, a linha melódica do canto é continuada pelos sopros; a voz se cala, como no Dichterliebe de Schumann, e a orquestra fala.
O mergulho na solidão e na noite dá a tônica de Um Mitternacht. A solenidade desse momento de encontro consigo mesmo tem correspondentes tímbricos marcantes. Pela primeira vez, as cordas estão ausentes; a orquestra requer duas flautas, um oboé d’amore, dois clarinetes, dois fagotes, um contrafagote, entre as madeiras; quatro trompas, dois trompetes, três trombones e uma tuba, entre os metais; além de tímpanos, harpa e piano. Um motivo breve, nos clarinetes, associado ao Mitternacht, também breve, do canto, marca o início de cada uma das cinco seções. A imersão do poeta, desesperançado, na noite da dor humana e de seu próprio sofrimento, parece ter correspondência nas melodias graves, descendentes, de trompas, tuba, fagote e contrafagote. Só a confiança nas mãos poderosas do “Senhor da vida e da morte” fazem triunfar sobre a condição humana. A conclusão brilhante do Lied, com uma sonoridade organística, comenta, solenemente, a entrega e a transfiguração.
Oiliam Lanna
Compositor e regente, professor da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais.