Robert SCHUMANN
Instrumentação: 2 flautas, 2 oboés, 2 clarinetes, 2 fagotes, 2 trompas, 2 trompetes, tímpanos e cordas
“O que impressiona na leitura atenta dos escritos de Schumann (…) é a sua prodigiosa riqueza em traços contraditórios” (André Boucourechliev). Assim o biógrafo mais importante de Schumann inicia seu principal estudo sobre a vida e a obra desse compositor. Usa “contradição” numa acepção dialética, para as fortes oposições de uma personalidade que desde cedo sinalizava desequilíbrio. Na alquimia de suas contradições, tão exacerbadamente humanas, Schumann sempre teve uma visão aguda de si próprio e de sua multiplicidade, personificada nos pseudônimos que usava: Eusebius, Florestan e Mestre Raro, conciliador de ambos. O biógrafo nos mostra que Schumann é eles todos e que sua música, mais que seus escritos, nos ajuda a compreendê-lo: “nela, a distinção entre a face clara e a face obscura de seu ser aparece com a evidência refulgente da obra de arte”. Schumann assumiu bem cedo essa multiplicidade e ela transparece com nitidez desde suas primeiras composições: a mascherata dos Papillons op. 2 já é, ainda segundo Boucourechliev, “um jogo de espelhos onde o homem se busca desesperadamente através de suas miragens inumeráveis”.
Se desde o início de sua carreira de compositor essas oposições já se revelam como traço fundamental de sua linguagem, que dizer, então, de suas obras de maturidade? Basta ouvir os primeiros minutos deste que talvez seja o mais emblemático dos concertos românticos, para percebê-las com nitidez irrefutável: após alguns compassos de uma introdução brilhante, segue-se, exposto pela orquestra e depois imitado pelo piano, o tema principal da obra, de caráter intimista, que dominará pelo menos os dois primeiros movimentos, mais a transição do segundo para o terceiro movimentos.
Essa quase onipresença do primeiro tema tem pelo menos duas explicações, que se complementam: de um lado, é uma estratégia para transcender e extrapolar, dentro de alguns limites, a forma sonata. De outro, o fato de que o Concerto em lá menor fora originalmente concebido como uma Fantasia para piano e orquestra. De fato, em maio de 1841 Schumann começa a compor, para sua esposa, a Fantasia, que só seria terminada em 1845. Há uma nota no diário de Clara Schumann que comenta: “Robert compôs um belo último movimento para a sua Fantasia para piano e orquestra em lá menor, de tal forma que ela acabou por se transformar em um concerto, que tocarei no próximo inverno”. A estreia se deu em dezembro de 1845, em Dresden, tendo como solista realmente Clara Schumann e a regência de Ferdinand Hiller, a quem o concerto foi dedicado.
Se a Fantasia se mostra principalmente no primeiro movimento, o fato é que a ideia nunca foi de todo abandonada, o que se reflete no aspecto cíclico da obra acabada. Assim Schumann consegue extrapolar estruturalmente os esquemas formais clássicos, propondo um conceito relativamente original para o concerto de instrumento solista. Se, para Boucourechliev, Schumann é o mais romântico dos músicos românticos, ousamos acrescer que seu Concerto para piano é o mais romântico dos concertos românticos.
Moacyr Laterza Filho
Pianista e cravista, Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa, professor da Universidade do Estado de Minas Gerais e da Fundação de Educação Artística.