Rafael Nassif
outras cores, novos véus foi composta para ser tocada após véus sobre cores. Contudo, não se trata de um segundo movimento de uma obra maior, mas simplesmente de uma música para ser tocada após a outra, e, desde o seu início, a relação com a peça precedente é traçada: as nove notas que se desvelaram gradativamente ao longo dos cinco minutos de véus sobre cores são agora apresentadas simultaneamente pelas madeiras. Por cerca de quarenta segundos o ouvinte é convidado a mergulhar nessa massa sonora, e, em seu interior, o acorde inicial de véus sobre cores, uma tríade de ré menor, se projeta de modo diversificado e ecoa no canto esquerdo do palco, quase como uma visita às ruínas dessa peça. Exatamente esse “sopro de som”, com o seu sutil desvelamento, sua inconstante vida interna, seu velamento gradativo e seu eco, é o tema de outras cores, novos véus. Na primeira parte da obra, esse “sopro” é repetido de modo variado por oito vezes.
À parte o papel estrutural da harmonia em outras cores, novos véus, também o timbre é um elemento de suma importância, e podemos contemplar a sua evolução no tempo como a transição de uma estação do ano à outra. E como o som permeia o nosso espaço, por que não traçar uma interseção concreta com o espaço específico da sala de concerto? Nas duas peças, o assento dos músicos foi detalhadamente delimitado, com algumas modificações na usual disposição orquestral: divisão espelhada das cordas por ambos os lados do palco, um grupo de trompas “quasi-eco” ao fundo, um corne-inglês ”lontano” atrás do palco, três percussionistas envolvendo a orquestra. Como cada um dos setenta instrumentistas tem uma parte individual, o timbre de cada nota é especificado para todos a cada momento, e a partir do esquema de assentos no palco são compostos “motivos” de movimento no espaço desses timbres. Com repetições e variações desses motivos “espaciais“ emergem “fraseados” que conferem uma sutil narratividade estereofônica.
O trabalho consciente em relação ao elemento espacial permite não só a construção de uma detalhada estereofonia, mas também uma “magicização” da orquestra no palco: os gestos dos músicos são também “compostos”, de modo a criar uma abstrata coreografia. Tal “coreografia” é desvelada principalmente nas cordas e nos vibrafones com arco, pois, além desses músicos estarem bem próximos do público, os gestos das arcadas são facilmente apreciáveis. Esse aspecto é bastante presente na segunda parte da obra, intitulado “coral celeste”, onde acontece uma interseção harmônica entre o bloco de sons inicial (com as nove notas de véus sobre cores) e as parciais de número sete a dezesseis da série harmônica da nota dó –1 (32 Hz, tocada alternadamente por contrabaixos, tuba, contrafagote e piano). De olhos fechados podemos sentir como a estereofonia aqui composta toca nosso corpo de modo expressivo. Se olhamos com atenção e velocidade para o palco, podemos também apreciar o desenrolar de um intenso balé nas cordas, principalmente nos violinos e violas: as arcadas caminham em cascatas quase que em efeito dominó, do centro-frente do palco para o fundo ou para as laterais e vice-versa, o flautim traz o fluxo sonoro cada vez mais próximo de nós, num crescente intenso de luminosidade.
Rafael Nassif
Pianista, compositor, professor. Além do Festival Tinta Fresca 2008, foi premiado no BMI Composers Awards, Nova York, 2009, com a obra os olhos são a luz do corpo.