Robert SCHUMANN
Filho de um livreiro, escritor e tradutor, Schumann mostrou, desde criança, inusitado interesse pela literatura e pela música. Foi um jovem leitor entusiasmado, encantando-se com o romantismo fantasioso de Jean-Paul e herdando de E. T. A. Hoffmann a ironia dissimulada, permeada de angústia metafísica e de emoções intensas, quase expressionistas. Schumann viveu o Romantismo de maneira radical (até o fascínio e os terrores da loucura) e converteu em estímulos musicais várias aspirações do movimento – o mistério da noite, a infância, a floresta encantada, as terras distantes. Para melhor manifestar a pluralidade de seu mundo interior, criou heterônimos (o introspectivo sonhador Eusebius, o revolucionário impetuoso Florestan, o conciliador Mestre Raro) que assinam suas críticas na imprensa e assumem a luta estética dos Davidsbuendler, chefiados pelo compositor, proclamando a liberdade formal contra o academismo dos Filisteus da Música. Eusebius, Florestan e Mestre Raro também “participam” de muitas partituras de Schumann, nas quais discutem, dialogam e enriquecem a trama musical com suas personalidades sonoras opostas. No Carnaval, op. 9, o compositor retratou musicalmente os amigos (Chopin, Clara Wieck) e construiu essa obra-prima do piano sobre quatro notas — lá, mi bemol, dó, si — que formam o nome da cidade Asch, na Boêmia, onde tinha uma namorada. Toda a música de Schumann traz esse aspecto biográfico, confidencial. Mas trata-se de uma confidência especial, de caráter interrogativo, artisticamente aberta, como se incessantemente se perguntasse: por quê? (Warum?), dúvida que se estende, instigante, ao ouvinte.
Foi somente em 1830 que Schumann decidiu-se definitivamente pela carreira de músico, tentando afirmar-se como pianista. O uso desastrado de um dispositivo mecânico para fortalecer os músculos da mão causou-lhe uma paralisia do dedo médio direito e, perdida a esperança do concertista, Schumann dedicou-se mais intensamente à composição, além de tornar-se redator e editor de uma revista musical. Compunha, escrevia poemas, artigos e, conforme uma carta de novembro de 1832 à sua mãe, planejou também dedicar-se ao violoncelo, “instrumento que usa mais os dedos da mão esquerda”. Esse plano de estudo, embora não concretizado, sinaliza a predileção do compositor pelo instrumento ao qual confiaria uma voz de destaque em sua música orquestral e de câmara.
Deve-se observar que Schumann só se consagrou à orquestra na maturidade, quando julgou possuir algumas ideias realmente originais. Entre 1828 e 1839, compôs exclusivamente para piano. Em 1840, depois do seu casamento com Clara Wieck, dedicou-se aos Lieder, escrevendo, em apenas um ano, suas melhores canções. Schumann teve que se moldar à grande forma-sonata orquestral, pois as principais características de seu gênio predispunham-no às pequenas miniaturas musicais. A liberdade de inspiração e a riqueza imaginativa – aliadas à capacidade de criar, em poucos compassos, um drama ou um intenso sentimento poético – cristalizaram-se com concisão admiravelmente lógica em seus Lieder e em sua singular produção pianística. O compositor sentiu que tais qualidades diluíam-se ao escrever para a grande orquestra segundo modelos arquitetônicos preestabelecidos. Mesmo admirando as sinfonias de Haydn, Mozart, Beethoven e Schubert, Schumann procurou um caminho pessoal nesse campo. Não lhe atraía a solução dos poemas sinfônicos dos contemporâneos Berlioz ou Liszt; por outro lado, sua fantasia afastava-o do delicado equilíbrio formal das sinfonias de Mendelssohn. A música orquestral de Schumann (quatro Aberturas; quatro Sinfonias; sete obras concertantes, entre elas os três Concertos — para piano, para violino e para violoncelo) é bastante original e, em muitos aspectos, inovadora. O compositor trata o característico jogo bitemático da forma sonata com grande liberdade – os contrastes necessários ao discurso musical se estabelecem mais pelo encadeamento melódico do que pela oposição temática. E para obter maior unidade orgânica entre as diferentes partes de suas grandes obras orquestrais, desfazendo o caráter fechado de cada uma delas, Schumann recorre à reapresentação de um mesmo tema em movimentos diversos e/ou à ligação ininterrupta dos andamentos (como no Beethoven de algumas sonatas). O Concerto para violoncelo, op. 129 ilustra, de forma exemplar, esses procedimentos schumannianos:
No primeiro movimento – Allegro (Nicht zu achnell) –, sobre três acordes das madeiras, o violoncelo expõe os temas dominantes – o primeiro traz uma inefável melodia e o outro se apresenta ritmicamente sincopado. Um motivo de tercinas cria um clima mais dramático sem recorrer às “lutas temáticas” típicas de um desenvolvimento formal.
O encadeamento direto ao movimento lento – Adagio (Langsam) – dispensa a habitual cadência do solista. Substituindo-a, um recitativo introduz essa meditativa Romanza (Fá maior), dominada por um amplo cantabile do violoncelo.
Uma relembrança do tema principal do primeiro movimento, em novo recitativo, leva ao Finale (Sehr lebhaft), vivaz rondó introduzido por uma rápida escala do solista. A Cadência, feita com acompanhamento orquestral, explora com incrível virtuosidade os recursos do instrumento. Mas não se trata de puro malabarismo instrumental ou mero artifício exibicionista – o solista permanece integrado ao quadro orquestral e a conclusão, de efeito irresistível, não desfaz o clima elegíaco de todo o concerto.
Paulo Sérgio Malheiros dos Santos
Pianista, Doutor em Letras, professor de Música da UEMG, autor do livro Músico, doce músico.