A Canção da Terra

Gustav MAHLER

(1907/1909)

Instrumentação: 2 piccolos, 3 flautas, 3 oboés, corne inglês, requinta, 3 clarinetes, clarone, 3 fagotes, contrafagote, 4 trompas, 3 trompetes, 3 trombones, tuba, bandolim, tímpanos, percussão, 2 harpas, celesta, cordas.

 

Gustav Mahler foi o grande elo entre, de um lado, Wagner e Bruckner e, de outro, a Segunda Escola de Viena. Divide-se entre o século XIX e o século XX, o que o coloca em um não lugar entre a valsa e a guerra. Sua personalidade dilacerada por conflitos psicológicos (o que o leva a consultar o próprio Doutor Freud) faz crescer nele um forte sentimento de alteridade, que transparece em toda a sua obra. Escreveria um dia: “sou três vezes apátrida: como natural da Boêmia, na Áustria; como austríaco, na Alemanha; como judeu, no mundo inteiro. Por toda parte um intruso, em nenhum lugar desejado” (apud Roland de Candé). Seus conflitos internos o opõem a seu tempo… e a todos os outros. Em sua música, as marchas, as fanfarras, as danças e as canções parecem ora evocar a morte, ora a loucura. Mesmo os trechos de aparente serenidade são imbuídos de uma angústia que sempre desassossega.

 

Talvez movido por esse sentimento de alteridade, Mahler foi atraído por uma compilação de poemas antigos chineses vertidos para o alemão por Hans Bethge (que se baseou em traduções anteriores), em 1908, sob o título de Die chinesische Flöte (A Flauta Chinesa). Do contato com essa obra e do momento atribulado pelo qual o compositor passava nasceu A Canção da Terra. Em 1907 Mahler tinha sido diagnosticado com uma doença cardíaca congênita, vira morrer sua filha mais velha e fora forçado a renunciar ao cargo de diretor da Ópera da Corte de Viena por causa de manobras políticas e de crescente sentimento antissemita. Escreveria a Bruno Walter, seu amigo e também grande regente, “que de um só golpe vira ruir tudo o que construíra, e que teria que reaprender seus primeiros passos”. Movido pela imagem de beleza e transitoriedade telúrica dos versos chineses que encontraria no ano seguinte, pôs-se a trabalhar na Canção da Terra, concluída em 1909. Sua estreia se deu em 1911, seis meses após a morte do compositor, no Tonhalle de Munique, sob a regência de Bruno Walter.

 

Quando publicada, a obra foi intitulada sinfonia. Na verdade, ocupa um lugar híbrido, que associa o Lied acompanhado de orquestra ao próprio sinfonismo. Composta para tenor e contralto (embora o tenor possa ser substituído por um barítono), os solistas se alternam na obra. O hibridismo da Canção da Terra consegue o grande feito de associar dois gêneros, mantendo, de um, a linha melódica franca e certo tom intimista e, de outro, a complexidade do tratamento temático e da arquitetura instrumental. Consegue, ainda, fazer transitar um gênero pelo outro: note-se, por exemplo, a similaridade do terceiro, quarto e quinto movimentos com o scherzo sinfônico, a do último movimento com um finale, a do primeiro e segundo movimentos com seus equivalentes de qualquer outra sinfonia de Mahler, guardadas as devidas especificidades. Nesse sentido, as integridades de ambos os gêneros, embora unidos, paradoxalmente se mantêm, mas estabelecem diálogo permanente.

 

Se Mahler está dividido entre os séculos XIX e XX, a inteligente originalidade dessa empresa (e a sua linguagem) faz a modernidade reclamá-la para si.

 

Moacyr Laterza Filho
Pianista e cravista, Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa, professor da Universidade do Estado de Minas Gerais e da Fundação de Educação Artística.

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