Abertura Carnaval Romano, op. 9

Hector Berlioz

(1844)

Instrumentação: Piccolo, 2 flautas, 2 oboés, corne inglês, 2 clarinetes, 2 fagotes, 4 trompas, 4 trompetes, 3 trombones, tímpanos, percussão, cordas.

 

O sucesso permanente da Abertura Carnaval Romano liga-se diretamente ao fracasso anterior da ópera Benvenuto Cellini, da qual Berlioz retomou dois números: o grande coro do Carnaval (Vinde, povo de Roma) e o dueto de amor de Cellini e Tereza (retirado do primeiro ato). Na Abertura, o compositor explora com êxito a oposição entre esses dois temas representativos, respectivamente, do frenético arrebatamento coletivo e do sentimento individual. Uma agitada tarantela (Allegro vivace) prenuncia a alegria da festa popular; mas logo dá lugar ao melancólico canto de amor do corne inglês (Andante sostenuto), desenvolvido a seguir em cânone. As reexposições sucessivas, em que se alternam combinações variadas dos dois temas, lembram um rondó cíclico.

 

Berlioz foi incompreendido e ridicularizado pela maioria de seus contemporâneos. A posteridade, porém, o proclamou um arauto do Modernismo, responsável pela criação da sinfonia programática e pela renovação do timbre orquestral. Na busca de sonoridades inéditas, utilizou instrumentos inusitados e reforçou os naipes instrumentais, explorando-os ao máximo quanto às possibilidades de coloração. Berlioz fez da orquestra seu verdadeiro instrumento. Quase nada nos legou para solo ou música de câmara; e mesmo o canto, frequente em sua obra, nela só se realiza plenamente quando tratado como componente instrumental em grandes massas corais. Suas inovações suscitaram um renascimento da música sinfônica, inspirando novas gerações de orquestradores e a consequente valorização de novos parâmetros estéticos.

 

Berlioz compôs estimulado por impressões literárias, organizando sua música, de indiscutível caráter autobiográfico, como ilustração de um texto ou enredo poético. Seus heróis literários – solitários e revoltados – tornam-se quase sempre projeções de seu ego. Por outro lado, contribuiu significativamente para a evolução da linguagem musical ao cultivar a ideia do poematismo – ou seja, a ordenação do discurso sonoro pela lógica motriz de ideias, fatos ou caracteres extramusicais. Normatizou o uso da idée fixe – um tema essencial que reaparece em diferentes caracterizações, no decorrer de toda a obra. Tais processos representaram, praticamente, uma alternativa à perfeição do modelo de desenvolvimento formal beethoveniano. Para Berlioz, os gêneros intimamente ligados à forma sonata teriam atingido os limites da perfeição na obra de Beethoven – e seria, portanto, impossível ir musicalmente à frente sem procurar outros caminhos.

 

Grande músico do Romantismo francês, Berlioz tornou-se o elo especular entre os alemães Beethoven e Wagner – o compositor sinfônico e o compositor de teatro por excelência. A afirmativa é de seu conterrâneo Pierre Boulez, para quem Berlioz prende-se à forma mais emocional do Romantismo alemão, estabelecendo uma voluntária confusão entre o real e o imaginário. Ao fazer de sua vida um romance tempestuoso, Berlioz soube ainda reinventá-la, transformando sua obra em um admirável gesto autobiográfico.

 

Paulo Sérgio Malheiros dos Santos
Pianista, Doutor em Letras, professor na UEMG, autor dos livros Músico, doce músico e O grão perfumado – Mário de Andrade e a arte do inacabado. Apresenta o programa semanal Recitais Brasileiros, pela Rádio Inconfidência.

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