Ritirata notturna di Madrid

Luciano Berio

(arranjo de Luciano Berio para obra de Boccherini)

 

Boccherini?… Aquele que compôs o Minueto? Berio?… Aquele que usava temas dos Beatles?

É precisamente o encontro de um compositor do século XVIII com outro, do século XX, falecido em 2003, que vai gerar o jogo de espelhos, ilusões e sugestões sobre o que é representar, alterar e brincar com um tema musical de origem espanhola, escrito há mais de 200 anos.

 

A obra Quatro versões originais da “Retirada Noturna de Madrid” de L. Boccherini sobrepostas e transcritas para orquestra, de autoria de Luciano Berio, composta em 1975 e estreada nesse mesmo ano em Milão, assume sem vaidades ou compromissos aquilo que o seu título sugere.

 

Berio, quando questionado pelo compositor Smith Brindle a respeito desta obra, respondeu com brevidade e resumiu sem rodeios o processo de composição: “Peguei uma versão da obra de Boccherini para quarteto de cordas, outra para quinteto de cordas, outra para quinteto com piano e outra com guitarra (violão), e sobrepus todas, com alguns ajustes engraçados que tive que realizar”. Tal sobreposição resultou na versão orquestral que será ouvida hoje.

 

A obra original de Luigi Boccherini (1740 – 1805), intitulada Musica notturna delle strade di Madrid, composta para quinteto de cordas em 1780 – período em que o autor vivia na Espanha –, tem sete andamentos, dos quais a Ritirata é o último. Foi precisamente para esse andamento que, tendo alcançado grande fama junto ao público de sua época, Boccherini foi convidado a fazer diversas versões para grupos instrumentais distintos, em que cada uma apresenta pequenas variantes em relação às outras. Na “recomposição” desta obra, Berio limitou-se a sobrepor orquestralmente as quatro versões escolhidas, por vezes não obedecendo a um alinhamento exato entre elas, fazendo assim pequenos ajustes. A única parte, na obra, que não pertence ao original, mas é derivada dele, é a da percussão. Assim, iremos escutar as melodias, harmonias e ritmos de uma banda militar caminhando pelas ruas de Madrid, aproximando-se de nós e posteriormente afastando-se, até se perder na distância e na escuridão.

 

Luciano Berio construiu, indubitavelmente, um dos percursos musicais mais interessantes do século XX. Tendo iniciado a sua produção como compositor inserido na vanguarda musical estruturalista e racionalista da Europa do pós-guerra, cedo decidiu percorrer outros caminhos criativos. Neles, a experimentação musical e uma poética baseada, acima de tudo, nas potencialidades de comunicação do objeto sonoro, aliam-se a uma busca incessante de matéria composicional nas manifestações musicais de todas as culturas e todas as épocas. Encontramos na sua obra referências simultâneas a músicas díspares e aparentemente inconciliáveis; porém, a sua conjugação, realizada pela maestria do compositor, aporta-lhes novos significados. Desde Monteverdi aos Beatles, o jazz, o serialismo dodecafônico, as canções folclóricas e a polifonia africana, em Berio tudo se une para dar origem a uma música pessoal e inconfundível.

 

João Pedro Oliveira
Compositor, professor da UFMG.

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