Dmitri SHOSTAKOVICH
Instrumentação: piccolo, 3 flautas, 3 oboés, corne inglês, 3 clarinetes, clarone, 2 fagotes, contrafagote, 4 trompas, tuba, tímpanos, percussão, harpa, celesta, cordas.
Ao longo da trajetória que o transformou no músico emblemático da Rússia soviética, Shostakovich estabeleceu relações contraditórias com o Regime – duras advertências, expurgos e condenações alternaram-se com honrarias, títulos e prêmios oficiais. Tal dubiedade manifesta-se em sua obra com a estratificação de dois discursos distintos – há uma voz grandiloquente, exterior, heroica, e outra, íntima, meditativa e austera.
Nos anos de 1920, a política de abertura cultural do governo Lenin permitiu ao jovem Shostakovich filiar-se à Associação para a Música Contemporânea, fascinado pelo atonalismo livre e pelo serialismo. Admirava particularmente Berg, Bartók e Stravinsky.
Com a morte de Lenin, a implacável censura stalinista sinalizaria outros rumos para os artistas soviéticos. Em suas Memórias, Shostakovich revela-nos o drama de um homem submetido a fortes pressões oficiais – o dilema do artista inovador condicionado a um academismo inevitável. As obras compostas no período stalinista traduzem o propósito – sincero ou simulado – de se submeter aos ideais de inteligibilidade e simplicidade neoclássicas preconizados pelo Comitê Central. Porém, mostram a consolidação de uma linguagem extremamente pessoal, pois Shostakovich, ao reler o tradicional cânone musical ocidental, enriquece-o com ousadas aquisições contemporâneas. Atinge assim os limites extremos de um expressionismo ultrarromântico, de caráter frequentemente heroico e de grande apelo socializante.
Em 1948, por ocasião da chamada “purga de Jedanov” (chefe de cultura da burocracia stalinista), Shostakovich foi suspenso temporariamente de sua docência no Conservatório de Moscou, acusado de orientação musical antipopular e formalista. Proibia-se-lhe estrear novas obras orquestrais.
O compositor procurou recuperar o prestígio oficial com o oratório O canto das florestas (Prêmio Stalin de 1949) e a trilha encomendada para um filme pretensiosamente patriótico. Porém, em contraste com essa voz exterior, Shostakovich escreveu obras cuja estética inviabilizava qualquer possibilidade imediata de execução – dois quartetos de cordas, o ciclo das Canções judaicas, op. 79 e o severo Concerto para violino, op. 77 (cuja estreia, como op. 99, só aconteceria em 1955). Entre outras inovações, tais obras trazem elementos da música popular judaica – da qual o compositor se aproximara através de seu discípulo Benjamin Fleischmann – e destoavam das campanhas antissemitas oficiais.
O Primeiro concerto para violino é a maior das obras concertantes de Shostakovich. Possui quatro movimentos, cujos títulos característicos lembram os de uma suíte. O Noturno inicial, essencialmente cantabile, explora a escrita para cordas duplas e os vários registros do instrumento solista. O Scherzo, movimento em que as inflexões judaicas são mais perceptíveis, traz a animação unida à irônica causticidade própria do compositor. O tema da Passacaglia aparece nas cordas graves com um contraponto das trompas. A seguir o violino dialoga com diversos blocos instrumentais. Uma grande cadência faz a ligação com a Burlesca final, movimento coreográfico que retrata a vivacidade irresistível de uma festa popular.
Paulo Sérgio Malheiros dos Santos
Pianista, Doutor em Letras, professor na UEMG, autor dos livros Músico, doce músico e O grão perfumado – Mário de Andrade e a arte do inacabado. Apresenta o programa semanal Recitais Brasileiros, pela Rádio Inconfidência.