Manuel de Falla
Instrumentação: Piccolo, 2 flautas, 2 oboés, corne inglês, 2 clarinetes, clarone, 2 fagotes, 4 trompas, 2 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos, percussão, 2 harpas, celesta, cordas.
O historiador e musicólogo francês Roland de Candé afirma categoricamente que “Manuel de Falla é o maior músico que a Espanha conheceu desde Victoria, o mais autêntico e o mais interiormente espanhol”. O fato é que Candé nunca fica em meios-termos nas suas opiniões e raramente esconde seu entusiasmo (ou a falta dele), revelador de uma orientação crítica muito bem definida. Tendências pessoais à parte, se se puder abstrair um pouco do teor hiperbólico de tal afirmação, vê-se que ela tem realmente uma grande parcela de verdade. Os autores espanhóis da virada do século XIX para o século XX, cujos principais representantes são Isaac Albéniz e Enrique Granados, nunca conseguiram se libertar de todo da linguagem romântica de que são herdeiros diretos. A essa linguagem, cujo principal modelo, tanto para um quanto para outro, é Liszt (que foi inclusive professor de Albéniz), ambos conseguem associar ao mesmo tempo aspectos das novas tendências da música francesa e certos aspectos tipicamente característicos da música tradicional espanhola. Tendo ambos vivido na Paris da Belle Époque, aí travaram contato direto com Debussy e Ravel e apresentam a uma França maravilhada uma música bem diferente do Capricho Espanhol de Rimski-Korsakov, da Carmem de Bizet, ou da España de Chabrier. Albéniz e Granados fazem uso de suas raízes folclóricas sem recair no mero emprego de “exotismos aplicados” (muito embora por vezes quase se rendam a eles), inaugurando uma corrente estética original, que cultiva o material regional atribuindo-lhe sempre novas significações. Por isso mesmo a Escola Espanhola é exemplar e, se se afirma definitivamente com Albéniz e Granados, culmina em Manuel de Falla.
Nessa perspectiva, a música de Falla se torna um pouco menos enigmática do que a sua própria figura: esse andaluz nascido em 1876, extremamente tímido e retraído, um tanto hipocondríaco, sempre cuidadoso em sua higiene pessoal, celibatário austero e profundamente religioso, parece ter sublimado suas paixões pelas vias da arte e do misticismo. Compositor meticuloso, cujos processos criativos eram naturalmente morosos em função de uma feroz autocrítica, deixou um legado numericamente modesto: cerca de trinta e seis obras. No entanto, essa produtividade contida é um marco decisivo na música espanhola e inaugura um caminho insuspeito para a aurora dos novecentos: se Albéniz e Granados são herdeiros do Romantismo, Manuel de Falla é definitivamente um compositor do século XX.
Seu trajeto como compositor, menos que uma linha evolutiva, parece traçar uma espiral, que acompanha também o uso que ele faz dos elementos da música tradicional espanhola. A exuberância das primeiras obras vai cedendo lugar (inclusive no campo da orquestração e do trabalho tímbrico) a um despojamento depurado, destilando uma linguagem cada vez mais original e pessoal: uma espiral que aponta em direção ao alto, que parte da exterioridade iluminada que se ouve em O chapéu de três pontas e chega a uma espécie de desnudamento ascético, francamente adotado no Concerto para cravo. Os “espanholismos” da primeira fase não são abandonados no percurso dessa espiral, mas filtrados infinitas vezes até chegar a suas porções mais essenciais. São desconstruídos e reconstruídos até que se lhe apresentem como matéria-prima nova e bruta.
La Vida Breve pertence àquela primeira fase e foi a obra que tirou Manuel de Falla do anonimato, ao ganhar o prêmio da Real Academia de Belas Artes de Madri. No entanto, posto que composta entre 1904 e 1905, essa pequena ópera em dois atos somente foi estreada em 1913, em Nice. Durante esse período, Falla fez diversas revisões na partitura, sobretudo na instrumentação, ajudado pelos conselhos do compositor Paul Dukas, seu amigo. Em La vida Breve Falla questiona, em primeiro lugar, o gênero: embora ópera, o tratamento sinfônico é de tal forma valorizado que adquire evidência até então pouco comum.
Ainda que obra de juventude, A vida breve já apresenta aspectos embasadores da linguagem de Manuel de Falla: a escrita austera e precisa, o emprego peculiar do material folclórico espanhol, sem recair em exotismos, mas depurado em elementos fundamentais (o que pode ser entrevisto, por exemplo, no emprego do violão em sua orquestração), o uso, nas linhas melódicas, dos modalismos e das inflexões do canto tradicional espanhol, que põem em xeque o tratamento vocal segundo a tradição do bel canto. Seus trechos puramente instrumentais (sobretudo Interlúdio e Dança), mesmo desvinculados da ópera, assumem tal vigor em unidade e coesão, que acabaram por se incorporar ao repertório sinfônico.
A vida breve pode ser vista, assim, por um lado, como uma obra-chave na linguagem de Falla. Por outro lado, porém, pode ser entendida como uma espécie de síntese de tendências várias da música espanhola, apontadas por seus predecessores ou contemporâneos. Uma espécie de resultante (no sentido matemático do termo) das “fontes primárias”, sobretudo advindas do Romantismo Italiano e de Liszt, e das fontes que lhe são (ao próprio Falla) diretas: seus contemporâneos franceses (sobretudo Debussy) e espanhóis (em especial Albéniz), além do folclore musical andaluz. Como tudo na obra de Falla, A vida breve continua surpreendente! Com isso, revela genuinamente a criatividade desse grande rebento da arte espanhola.
Moacyr Laterza Filho
Pianista e cravista, Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa, professor da Universidade do Estado de Minas Gerais e da Fundação de Educação Artística.