Concerto para piano em ré menor, K. 466

Wolfgang Amadeus MOZART

Não houvesse os concertos para piano de Mozart, estariam irremediavelmente empobrecidas as histórias da música e do homem. Devido à originalidade e ao caráter diverso de cada uma dessas obras, seus vinte e três concertos – incluindo os concertos para dois e três pianos – configuram uma espécie de diário da extensa produção do compositor e alcançaram, na maturidade, um nível de expressividade sem precedentes no gênero.

 

Inovando pelo rico diálogo entre solista e orquestra, pelo refinamento das texturas e despojamento de todo virtuosismo supérfluo, Mozart exerceu forte influência sobre os compositores que o sucederam. Difícil imaginar, sem a iluminação de Mozart, que rumos poderia ter tomado o repertório posterior para piano e orquestra, ou se teríamos chegado aos concertos românticos e modernos na forma e no esplendor em que hoje os conhecemos.

 

Entre todos os concertos, nenhum outro foi tão profético quanto o K. 466, estreado em Viena em 1785, com o próprio autor como solista. Após a estreia, Joseph Haydn declarou ser Mozart o maior compositor que conhecia, pessoalmente ou de nome. A obra transcende os limites estéticos da época e antecipa características da linguagem romântica, tais como a individualidade e a espontaneidade da liberdade de expressão, sem transpor de forma radical a estrutura clássica. É o mais dramático e fervoroso dos dois escritos em modo menor (o outro é o Concerto K. 491, em dó menor), o que justifica ter sido tão popular no século XIX e que permaneça até hoje o mais famoso da coletânea. É significativa a escolha da tonalidade de ré menor, de pouco uso em Mozart, mas que, como nos casos do Réquiem e da cena do banquete de Don Giovanni, associa-se com frequência à tragicidade.

 

O caráter apaixonado do Concerto em ré menor talvez tenha fascinado Beethoven, que ainda jovem o executou num concerto em benefício da viúva de Mozart. Suas cadências de uso próprio, escritas para o primeiro e terceiro movimentos, ficaram célebres e são tocadas com frequência.

 

A abertura orquestral do Allegro arrebata o ouvinte desde o sombrio acorde de ré menor, reafirmado pelos violinos e violas em síncopes inquietantes, sobre o insistente e ameaçador motivo dos violoncelos e contrabaixos. Poucos compassos adiante, o clima passional da obra é francamente declarado na explosão tempestuosa do primeiro forte. Na entrada do solista, em soberano contraste com o tutti inicial, o piano canta uma das mais calorosas melodias escritas por Mozart, atestando a predileção do compositor pelo instrumento (o novo tema em momento algum será compartilhado com a orquestra). Surpreende também que o movimento conclua não de forma impetuosa, como o ar revolucionário da obra poderia invocar, mas em gentil pianíssimo. A serenidade habitual do segundo movimento é reforçada, nesta sonhadora Romanza, pela tonalidade de si bemol maior. Piano e orquestra dialogam, assumindo mutuamente as frases um do outro. Construída em seções (A-B-A-C-A-Coda), revive, na agitada seção C, em súbita modulação para sol menor, a conflituosa atmosfera do Allegro. Finaliza de forma conciliadora, em pacífica amabilidade. O Rondó final mantém o espírito grave do primeiro movimento, mas sua longa e otimista coda em modo maior induz a especulações sobre as razões desse giro feliz na conclusão do concerto: mera e gentil concessão ao gosto predominante do público da época pelas tonalidades maiores, recurso de praxe para os finais dos primeiros e terceiros movimentos em modo menor, no estilo galante que Mozart representa, ou deliberado término vitorioso sobre os conflitos anunciados na obra?

 

Miguel Rosselini
Pianista e professor da Escola de Música da UFMG

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