O naufrágio de Kleônicos

Heitor VILLA-LOBOS

(1916)

Instrumentação: piccolo, 3 flautas, 2 oboés, corne inglês, 2 clarinetes, clarone, 2 fagotes, contrafagote, 4 trompas, 3 trompetes, 4 trombones, tuba, tímpanos, percussão, harpa, cordas.

 

Heitor Villa-Lobos recebeu sua educação musical formal num Rio de Janeiro esteticamente dividido. Leopoldo Miguez, quando assume a direção do Instituto Nacional de Música, em 1890, promove uma estética musical moderna em contraposição ao conservadorismo da tradição operística italiana do bel canto. Para Miguez, moderno seria a música de Richard Wagner e os princípios composicionais de Camille Saint-Saëns. Alberto Nepomuceno, seu sucessor, acirra ainda mais as disputas estéticas ao importar a música revolucionária de Debussy.

 

Sabe-se muito pouco sobre as atividades de Villa-Lobos entre os anos de 1905 e 1912, seu período de formação. Comprova-se, porém, que, ao retornar ao Rio de Janeiro, vindo de Manaus, Villa-Lobos passou a trabalhar em sociedades de concertos, cinemas e cafés, e envolveu-se com grupos de chorões da cidade. A partir de 1915 dedicou-se mais amiúde à composição. Suas duas primeiras sinfonias, o poema sinfônico O naufrágio de Kleônicos e a opera Izaht, alinham-se à tendência pós-romântica francesa. Segundo o próprio Villa-Lobos, as duas sinfonias foram compostas de acordo com o Curso de Composição Musical de Vincent D’Indy. O poema sinfônico O naufrágio de Kleônicos, por sua vez, revela profunda afinidade com a música de Saint-Saëns. Sua passagem final, transcrita para violoncelo e piano como O canto do cisne negro, é uma óbvia alusão ao Cisne de Saint-Saëns. Ambas as obras apresentam a mesma estrutura: um solo de violoncelo acompanhado de arpejos.

 

Poucas certezas se têm sobre o texto que inspirou o poema sinfônico. No catálogo de obras de Villa-Lobos, consta que um bailado teria sido extraído do livro Loulou Fantoche: Fantasias de Carnaval, de Léo Teixeira Leite Filho. Sabe-se pelo crítico Medeiros e Albuquerque que Loulou Fantoche traz a “história de uma rapariga cocainomaníaca que, farta de aturar os ciúmes do amante, aproveita uma noite de Carnaval, sai, e tem uma aventura com outro homem”. Na cena que se refere ao naufrágio de Kleônicos, a moça, como uma dançarina pagã, dança ao som de uma orquestra imaginária, vivenciando assim a história do naufrágio. A música de Villa-Lobos acompanha perfeitamente a narrativa, principalmente nos três momentos em que utiliza a melodia do cisne negro.

 

O marinheiro Kleônicos insiste em navegar pelos turbulentos e tempestuosos mares de outono, entre Kelessyria e Tassos. Quando um cisne negro cruza o céu e as ondas se agitam, anuncia-se um destino fatal. Desesperados, os marujos põem-se a chamar em coro por suas mulheres. Ao pôr do sol o cisne sobrevoa uma vez mais o navio, que se parte em dois, afogando toda a tripulação. Kleônicos, no mar, agarra-se a um remo. O cisne então desce em rasante contra o marinheiro, e na luta a ave se fere. O marujo afoga-se enquanto a ave se agita, se contorce e canta “no grande anseio de quem vai cantar, pela derradeira vez, o mais lindo dos cantos”. O mar faz eco aos soluços da ave e também o faz a bailarina, que, em convulsões, desfalece como pássaro morto.

 

Igor Reyner
Pianista, Mestre em Música pela UFMG, doutorando de Francês no King’s College London e colaborador do ARIAS/Sorbonne Nouvelle Paris 3.

anterior próximo