Os Troianos: Caçada real e tempestade

Hector Berlioz

(1856)

Instrumentação: Piccolo, 2 flautas, 2 oboés, 2 clarinetes, 2 fagotes, 4 trompas, 4 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos, percussão, cordas.

 

Como movimento humanista o Romantismo é muito mais complexo do que se lhe atribui, a começar pela sua dimensão social, e tem uma abrangência mais ou menos universal pela Europa, tomando diferentes atalhos. Por exemplo, o gênio modificador de Beethoven alimenta-se, ao menos em parte, do ideário que impulsionou a Revolução Francesa. Não há, pois, que se atribuir uma pátria ao Romantismo, mas há que lhe conferir uma certa universalidade que, paradoxalmente, se embasa na individualidade. Se, na linguagem, o Romantismo busca a expressão de sentimentos individuais, ideologicamente ele se fundamenta no culto à personalidade, de diversas formas. Despontam, assim, alguns nomes paradigmáticos: Beethoven é o primeiro deles. Na França, Bizet, Gounod e, mais tarde, Saint-Saëns. Mas, ali, a figura mais emblemática é sem dúvida a de Berlioz.

 

Nada falta à figura de Berlioz para que se desenhe a silhueta do compositor romântico: a cabeleira, o perfil esguio e um tanto agressivo, o nariz, o temperamento ávido e apaixonado e uma postura egocêntrica que o levou um dia a dizer “minha vida é um romance que me interessa muito”. E, de fato, Berlioz soube fazer de si uma espécie de personagem que, consciente ou inconscientemente, aderia ao imaginário romântico. Quando vai a Paris para estudar Medicina, descobre a ópera e decide tornar-se músico, o que faz entrar em ebulição sua família, burguesa e relativamente abastada.

 

Mas a rebeldia juvenil rendeu à posteridade um músico determinante para a História. Profundo conhecedor de Beethoven, Berlioz não se submete a ele e leva sua própria escrita orquestral a um virtuosismo que potencializa as possibilidades melódicas e rítmicas dos instrumentos, em que todos os grandes sinfonistas do final do século XIX encontrarão modelo. Ademais, seu Tratado de Orquestração, mais do que obra técnica, é um escrito de estética. Em sua linguagem, a melodia francesa adquire outras feições e, em sua obra sinfônica, o emprego de ideias fixas, dotadas de valor simbólico, anunciam o Leitmotiv de Wagner.

 

Os Troianos é uma ópera em cinco atos, com libreto escrito por ele mesmo, baseado na Eneida de Virgílio. Berlioz nunca a viu encenada integralmente. A estreia da parte final (Os Troianos em Cartago), constituída dos três últimos atos, deu-se em 1863, em Paris, e teve vinte e uma récitas. A ópera completa foi estreada em 1890 em Karlsruhe, na Alemanha, bem depois da morte do compositor e, desde então, tem sido considerada uma das mais importantes obras dramáticas do século XIX.

 

Caçada real e tempestade é a cena que abre o quarto ato da ópera. O ouvinte desavisado, familiarizado com o Romantismo alemão, quererá encontrar antecipações de Wagner e reminiscências de Beethoven, Schumann ou Mendelssohn. Não se trata de nada disso. Berlioz tem uma linguagem própria e uma personalidade musical forte o suficiente para ser ele mesmo. Se, na ópera, os eventuais elementos descritivos ou evocativos (tanto da caçada quanto da tempestade) fazem sentido, a execução de concerto desta bela página de Berlioz revela o grande melodista e o grande orquestrador que impressionou seus sucessores.

 

Moacyr Laterza Filho
Pianista e cravista, Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa, professor da Universidade do Estado de Minas Gerais e da Fundação de Educação Artística.

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