Parade: Balé realista sobre um tema de Jean Cocteau

Erik Satie

(1917)

Instrumentação: Piccolo, 2 flautas, 2 oboés, corne inglês, requinta, 2 clarinetes, 2 fagotes, 2 trompas, 3 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos, percussão, harpa, cordas.

 

O Erik Satie das eternas Gymnopédies e Gnossiennes, que a mídia, os melômanos e os estudantes de piano nos fazem ouvir à exaustão, não revela um décimo desse músico estranho que ajudou a fazer a virada do século XIX para o século XX. Contemporâneo de Debussy e de Ravel, em muitos aspectos parece mais jovem e mais arrojado que eles, e sua obra gera polarizações extremas: de um lado há quem o julgue um grande precursor; de outro, há quem o considere um farsante revestido de ironia. “Vim ao mundo muito jovem em um tempo muito velho”, foi como ele próprio se definiu. Nesse sentido, sua obra é vária: há um Satie arcaizante, que suprime em suas partituras a barra de compasso, que adapta aos modos medievais encadeamentos paralelos de acordes e que revisita as sarabandas barrocas; há o Satie erótico (no sentido mais puro da palavra – não na acepção distorcida do mundo contemporâneo) das Gymnopédies… velado, mas sem recalque; há um Satie de cabaré, como o das canções, deliciosamente ambíguo como Toulouse-Lautrec ou Kurt Weil; há o místico, que compõe as Ogivas e as Véxations para piano, ou as Trois Sonneries de la Rose+Croix.

 

No panteão da História da música, o lugar de Satie é pequeno, mas importante. Em 1913, com a opereta Le Piège de Méduse, ele é dadaísta três anos antes do Dadaísmo. Dez anos antes do Surrealismo ele insere em suas peças para piano certas indicações para o intérprete e certos textos narrativos que têm, para dizer pouco, forte inspiração onírica: “vendo a si próprio de longe”, “ignorando a sua própria presença”, “como um rouxinol que tivesse dores de dente”. Em pleno auge de Debussy e Ravel, compõe obras para piano de um despojamento meticulosamente trabalhado, que ele nomeia com títulos perturbadores: Descrições Automáticas, Embriões Ressecados, Três Peças em Forma de Pera. Frequentemente considerado um músico amador por seus contemporâneos, entra, em 1905, aos quarenta anos, para a Schola Cantorum de Paris. Recebe ali, em 1908, um diploma de contraponto. Essa postura, ao mesmo tempo subversiva e irônica, fez de Satie um artista que sempre se recusou, por princípio, a vender o peixe.

 

Parade é, sem dúvida, a sua partitura mais importante. Esse balé em um ato, com argumento de Jean Cocteau, costumes desenhados por Picasso e coreografia de Léonide Massine, foi escrito para os Ballets Russes de Sergei Diaghilev, que o estrearam no Théâtre du Châtelet, em Paris, aos dezoito dias de maio de 1917, sob a batuta de Ernest Ansermet.

 

Sobre a obra, Jean Cocteau escreveu que se tratava de “uma banda carregada de sonho”. O próprio Satie, com ironia e falsa modéstia, a declarou “um fundo com certos barulhos que Cocteau julga indispensáveis”. Apollinaire disse que se tratava de “une sorte de surréalisme” (uma espécie de surrealismo), três anos antes de o movimento surrealista surgir em Paris. Na música de Parade, a ironia e o sempiterno espírito subversivo de Satie estão condensados. No balé, estão potencializados por Picasso e Cocteau. Na fachada bufa de Satie, porém, esconde-se uma emoção que nem sempre é bem compreendida.

 

Moacyr Laterza Filho
Pianista e cravista, Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa, professor da Universidade do Estado de Minas Gerais e da Fundação de Educação Artística.

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