Igor STRAVINSKY
Instrumentação: piccolo, 3 flautas, 2 oboés, corne inglês, 3 clarinetes, clarone, 2 fagotes, contrafagote, 4 trompas, 3 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos, percussão, celesta, piano, harpa, cordas.
Em Petrushka, desde os compassos iniciais, Stravinsky conduz o ouvinte através de um cenário multicolorido, no qual a diversidade de atmosferas e de timbres, a vivacidade da invenção rítmica e a riqueza de contrastes convidam à imersão em um mundo singular. A história do fantoche, que se emociona, cria alma e não passa imune às vicissitudes da existência, ecoa em cada um de nós, por sua humanidade, conduzida pela magia da invenção musical stravinskiana.
Petrushka é um dos três balés da chamada fase russa de Stravinsky. Estreada em 1911, ladeada por duas outras obras marcantes – O pássaro de fogo (1910) e A sagração da primavera (1913) –, ocupa lugar importante na multifacetada produção do compositor. É quase mesmo uma preparação oportuna e bem-vinda para o cometimento da Sagração, um meio caminho no qual traços significativos da personalidade stravinskiana já se impunham.
Segundo o próprio compositor, Petrushka foi, de início, idealizada como uma espécie de “peça de concerto”, na qual o piano teria um papel relevante. Stravinsky relatou a visão de um “fantoche subitamente furioso que, por suas cascatas de arpejos diabólicos”, exasperava a paciência da orquestra, que replicava com suas “fanfarras ameaçadoras”. Na sequência, uma “terrível luta” levava à queda “dolorosa e lamentosa do pobre fantoche”. Quando trechos da nova composição foram apresentados a Diaghilev, o fundador e diretor dos Balés Russos a princípio se mostrou surpreso com a interrupção da composição de uma obra encomendada após o sucesso de O pássaro de fogo – precisamente A sagração da primavera –, mas a surpresa cedeu lugar ao entusiasmo, pela qualidade do material apresentado e pelo sucesso que o tino comercial de Diaghilev antevia, caso o compositor aquiescesse às necessárias reformulações em Petrushka, no sentido de transformá-la em balé.
O argumento da obra definitiva ficou a cargo do compositor, com o qual colaborou Alexander Benois, também responsável pela cenografia. Vestígios da ideia original, da visão que amalgamava elementos musicais e dramáticos, marcaram a versão da estreia: a parte pianística foi tratada com destaque e o fantoche sucumbiu, mas agora vitimado pelas emoções consequentes a um amor não correspondido. Mesmo na apresentação em concerto, sem o recurso à cena coreográfica, alguns dados do argumento podem contribuir para a apreensão e fruição da obra. “Burlesca em quatro cenas”, tal como anotado na partitura, Petrushka se inicia com um cenário no qual uma multidão na praça do Almirantado, em São Petersburgo, festeja o Carnaval Ortodoxo.
O fervilhamento de timbres, de melodias de inspiração folclórica, a riqueza rítmica estão entre os elementos que compõem o cenário onde passa, dançando, um grupo de bêbados, e aparecem, em delicado contraste, um tocador de realejo, uma dançarina que marca o compasso com a ajuda de um triângulo … É nesta cena de rua, caleidoscópica, que surgem as personagens centrais da história. Anunciado pelos tambores, um teatro de marionetes atrai a atenção do público. Conduzido por um velho, misto de mago e de charlatão, o teatro abriga os fantoches que ganham vida, tocados pelos sortilégios de um solo de flauta: Petrushka, a Bailarina e o Mouro começam a dançar, para espanto dos presentes. Essa Dança Russa, trepidante, encerra a primeira cena. A multidão só voltará na cena final, após duas cenas relativamente breves, mas capitais para o desenvolvimento do drama. Na primeira delas, Petrushka é brutalmente empurrado porta adentro pelo charlatão e, em seu quarto, se vê a sós com sua triste sorte. Sua expressão de dor é, por enquanto, apenas um lamento, representado pelos arpejos superpostos de dois clarinetes, em tonalidades que distam um trítono entre elas (Dó e Fá sustenido maiores). A entrada em cena da Bailarina que repudia o amor de Petrushka só faz aumentar seu desespero, que a orquestra ilustra com a transformação do lamento, agora um grito executado pelos trompetes. A cena seguinte, nos aposentos do Mouro, é marcada por uma valsa, “à maneira de” Joseph Lanner, compositor austríaco, em contraponto com a melodia de uma conhecida canção parisiense da época. Esse divertido jogo musical é o pano de fundo para a exasperação de Petrushka. Uma briga com o Mouro encerra a cena e, com a volta da multidão, o cenário se enche de situações e de atmosferas contrastantes. Em meio à animação geral, passam despercebidos os gritos que partem do teatro de marionetes, até que surge Petrushka, perseguido pelo Mouro, que o atinge, mortalmente, com um sabre. Diante da multidão estupefata, o charlatão segura o corpo do fantoche, tentando convencer a todos de que, no final das contas, trata-se apenas de um boneco. A multidão se dispersa e, ao ver, sobre o teatro de marionetes, a sombra ameaçadora de Petrushka, também o velho mago sai de cena. Stravinsky nos reserva um final surpreendente, um golpe de gênio ao envolver, em uma orquestração de meias tintas, a aparição fantasmagórica. E o último grito de Petrushka, nos trompetes, parece interrogar, a todos nós, sobre a verdadeira natureza do fantoche.
Oiliam Lanna
Compositor e regente, Doutor em Linguística (Análise do Discurso), professor da Escola de Música da UFMG.