Concerto para a mão esquerda

Maurice RAVEL

Ecos da experiência contundente durante a Primeira Grande Guerra podem ser ouvidos em algumas obras de Ravel. Revelam-se com as cores do drama, em La Valse – quase uma desconstrução dessa dança e do que ela evoca – ou tingidos de nostalgia, em Le Tombeau de Couperin – que tem seus movimentos dedicados a amigos do compositor, mortos em combate. No Concerto pour la main gauche, os vestígios daquela experiência irrompem como um brado de superação. A obra foi encomendada pelo pianista austríaco Paul Wittgenstein, cujo braço direito fora amputado durante a Guerra. Entretanto, malgrado as circunstâncias que envolvem sua concepção, o Concerto não deixa escapar, diante das vicissitudes, o menor sinal de limitação. Não há concessões, é uma obra densa e virtuosística: diante de um numeroso efetivo instrumental, o piano ora dialoga, ora deixa que outras vozes cantem, ou ainda se contrapõe, com vigor, às investidas do tutti orquestral. Além disso, em duas cadências, o piano, a sós, comenta e expande a expressividade de temas que circulam pela partitura – com vigor e dramaticidade, na cadência após a seção introdutória e, quase ao final do concerto, com delicadeza e intimismo.

 

Logo de início, o Concerto se mostra peculiar, pela atmosfera e por dois temas, bem caracterizados pelo timbre. O primeiro é entregue a um raro solo de contrafagote. Seu ritmo de notas pontuadas lembra uma abertura de suíte, em estilo francês, porém imerso em clima sombrio, difuso, criado pelas cordas graves. O segundo tema, entregue às trompas, atrai a atenção por seu cantábile vocal. A partir dessa exposição, os dois temas, em contraponto, expandem-se pela orquestra, ganham luz e novas cores. A primeira intervenção do solista é uma extensa cadenza. Aqui, o solista elabora os materiais temáticos, após largos gestos ornamentais que exploram todos os registros do instrumento. O tutti que se segue faz jus à bravura da cadência pianística e dá continuidade à elaboração temática. A volta do solista, em um canto delicado, é apenas uma breve clareira que serve de preâmbulo à nova função do piano: secundar as intervenções de diversos solistas dentro da orquestra. Esse fino tecido composicional o ouvinte atento pode perceber ao longo da obra: os temas e atmosferas alternam-se, superpõem-se, assim como os andamentos. Nesse sentido, vale observar, após a primeira grande articulação formal, a sucessão de materiais temáticos. Trata-se de um scherzando, em ritmo de marcha, em que, de início, solista e orquestra dividem breves intervenções. O movimento é rápido, mas sua evolução caleidoscópica cede lugar ao reaparecimento do segundo tema do Concerto. É um momento de rara combinação de materiais composicionais: o movimento de marcha, vivo, atua como fundo, subjacente ao tema lento, no solo de fagote e no de trombone, tema que se expande aos diversos naipes. Na volta ao andamento inicial, a reelaboração dos temas da primeira seção é feita pela orquestra, em duas intervenções vigorosas que emolduram a última cadência do piano.

 

Vale lembrar que o Ravel compositor do Bolero, ou de La Valse, pode levar a esquecer o Ravel compositor de um importante catálogo de obras pianísticas. No Concerto para a mão esquerda, ambos nos oferecem, com essa pedra de toque do repertório para piano e orquestra, a experiência de um interesse continuamente renovado.

 

Oiliam Lanna
Compositor e regente, professor da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais.

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