Daphnis et Chloé: Suítes nos. 1 e 2

Maurice RAVEL

(1909/1912)

Instrumentação | Suíte nº 1: Piccolo, 2 flautas, flauta em sol, 2 oboés, corne inglês, requinta, 2 clarinetes, clarone, 3 fagotes, contrafagote, 4 trompas, 4 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos, percussão, 2 harpas, celesta, cordas.

Instrumentação | Suíte nº 2: 2 piccolos, 2 flautas, flauta em sol, 2 oboés, corne inglês, requinta, 2 clarinetes, clarone, 3 fagotes, contrafagote, 4 trompas, 4 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos, percussão, 2 harpas, celesta, cordas.

 

Ravel não parece se encaixar na imagem popular dos gênios subjugados por inspirações arrebatadoras, que passam dias compondo à exaustão e que emergem do transe com uma obra que parece ter surgido por vontade própria. Ravel não compunha diariamente, embora fosse capaz de compor rapidamente, quando necessário. Suas ocupações diárias eram as mesmas de qualquer pessoa comum: ele gostava não apenas de música, mas também de cuidar do jardim, de passear ao ar livre e de observar as estrelas.

 

“Meu trabalho de composição começa com um longo período de gestação consciente e, em geral, necessário. Posso, portanto, ficar ocupado por anos sem escrever uma única nota. Após esse período, a escrita flui rapidamente.”

 

Existia, entretanto, algo que despertava nele o ímpeto de compor: a aparição de um novo “problema” a ser solucionado. E os “problemas” geralmente vinham na forma de encomendas de novas obras. As encomendas costumavam trazer sugestões de universos sonoros que dificilmente lhe ocorriam se deixado por conta própria. Em 1909, Sergei Diaghilev encomendou, a Ravel, um balé sobre a história de Dáfnis e Cloé, no mesmo ano em que encomendava, a Stravinsky, um balé sobre o conto de fadas russo O pássaro de fogo. O jovem Stravinsky, de 27 anos, era desconhecido fora da Rússia, enquanto Ravel, sete anos mais velho, já se tornava relativamente famoso em toda a Europa. Ravel começou imediatamente a compor o balé, mas só viria a terminá-lo três anos mais tarde, em 1912. Nesse meio tempo, os Ballets Russes estrearam O pássaro de fogo de Stravinsky, assim como seu segundo balé, Petrushka, enquanto Ravel orquestrava suas próprias composições Ma mère l’oye e Valses nobles et sentimentales.

 

Dáfnis e Cloé é um dos mais antigos e conhecidos romances gregos. Escrito por volta do século II d.C., sua autoria é atribuída a um autor de nome Longus, a respeito do qual pouco se sabe. A história fala da vida do pastor Dáfnis e da pastora Cloé, seu amor e suas aventuras. Ambos foram abandonados pelos respectivos pais quando muito pequenos, na ilha de Lesbos, e criados por pastores: Dáfnis por Lamon e Cloé por Dryas. À medida que cresciam, as crianças se apaixonavam um pelo outro, sem compreenderem o significado do amor que sentiam. Em um dia de festa, Cloé é sequestrada por piratas, Dáfnis chora e reza para que ela retorne com vida. O deus Pan o ajuda e resgata Cloé. Todos comemoram seu regresso, uma grande festa é armada e os dois podem, finalmente, se casar.

 

O balé é dividido em três partes. A primeira inicia-se com uma dança religiosa em que vários pastores tomam parte, incluindo Dáfnis e Cloé, até o momento em que ela é sequestrada pelos piratas e os pastores invocam o deus Pan. A segunda parte se passa no acampamento dos piratas; Cloé tenta, em vão, fugir, mas é recapturada. O deus Pan surge. Na terceira parte, Cloé é trazida de volta, os pastores se alegram, dançam uma dança frenética e Dáfnis e Cloé se reúnem finalmente.

 

Ravel participou da elaboração do argumento, juntamente com Michel Fokine, coreógrafo dos Ballets Russes. A partitura para piano ficou pronta em maio de 1910, mas a orquestração só seria finalizada no dia 5 de abril de 1912, dois meses antes da estreia. A primeira apresentação, no dia 8 de junho de 1912, no Théâtre du Châtelet, em Paris, teve Pierre Monteux como regente, Vaslav Nijinsky no papel de Daphnis, Tamara Karsavina no de Chloé, coreografia de Michel Fokine, cenário e figurinos de Léon Bakst e corpo de bailarinos do Ballets Russes. A apresentação foi um sucesso e ajudou a estabelecer a reputação de Ravel como um dos principais compositores franceses da época.

 

O balé Daphnis et Chloé emprega a maior orquestra já utilizada por Ravel. Seu papel é imprescindível, não apenas interpretando as cenas como dando suporte à dança. A orquestra é ainda responsável por garantir a clareza das passagens, em um balé cuja ação é extremamente complexa. As cordas sustentam o edifício musical, tocando constantemente em divisi, permitindo, assim, uma maior liberdade às madeiras para interpretar as sutilezas dos personagens, e aos metais para representar as multidões. Um coro, colocado atrás da cena, canta as notas sem texto e adiciona efeitos maravilhosos a diversas passagens (nessas suítes de concerto, o coro pode ser substituído por uma versão gravada).

 

Daphnis et Chloé, uma das obras essenciais da música do século XX, nos permite apreciar Ravel em um de seus melhores momentos, não apenas como grande compositor e refinado orquestrador, mas, também, como habilidoso construtor de cenas. Em 1911, antes de terminar a orquestração do balé, Ravel extraiu, da música que havia composto até aquele momento, uma suíte de concerto. Intitulada Suíte nº 1, ela foi estreada antes do balé, no dia 2 de abril de 1911, pela Orquestra Colonne, com regência de Gabriel Pierné. Após a estreia do Balé, Ravel trabalhou na elaboração da Suíte nº 2, que só seria estreada em 1913. O material musical da Suíte nº 1 (Nocturne, Interlude e Danse guerrière) foi retirado das partes 1 e 2 do balé, desde a dança dos pastores e o sequestro de Cloé até o seu resgate pelo deus Pan. O material musical da Suíte nº 2 (Lever du jour, Pantomime e Danse générale) foi retirado da parte 3 do balé: do dia seguinte ao resgate até a dança final da união dos amantes.

 

Guilherme Nascimento
Compositor, Doutor em Música pela Unicamp, professor na Escola de Música da UEMG, autor dos livros Os sapatos floridos não voam e Música menor.

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