Maurice RAVEL
Embora frequentemente se associe a obra, a pessoa e a linguagem de Ravel à de Debussy numa amálgama “impressionista”, e embora Ravel admirasse Debussy, treze anos mais velho que ele, é de se marcar que a orientação estética do primeiro tem tamanha originalidade, que aponta para caminhos da música do século XX cuja importância se iguala talvez à do próprio Debussy. É quase inevitável – e, portanto, legítima – a comparação que habitualmente se estabelece entre ambos, mas se muitos aspectos os aproximam, muitos outros os separam.
Em certo sentido, pode-se observar em Ravel um contínuo processo de releitura. Ele parece tomar por desafio as formas e modelos antigos para retrabalhá-los à sua maneira, num processo de recriação e de estilização extremos, que o acaba afastando de qualquer preceito escolástico ou formalista. Ele é um construtor criterioso, que conhece a fundo o material com que trabalha, e cujo preciosismo revela uma ciência precisa e exata. A despeito disso, porém, ele nunca deixa de ser original: todo o domínio da técnica e de seus materiais lhe dá a possibilidade de transcender o previsível… Basta um relance de olhos sobre seus caminhos no campo da orquestração para que se tenha uma leve amostragem disso. Também com as novas linguagens, com que trava contato na Exposição Universal de Paris, Ravel assume atitude semelhante: a ele encantam o novo e o exótico, os modalismos orientais, a liberdade melódica e harmônica do jazz. Deste último, Ravel se aproveita ora explicitamente, como na Sonata para Violino, ora como possibilidade criativa, como no Concerto em Sol para piano e orquestra. Acessível aos novos elementos, mas sem ideias preconcebidas, neles encontra caminhos para manter-se original.
Também de sua herança, através de Fauré (seu professor) e de um Romantismo francês agonizante, Ravel tira partido, relendo-os à sua maneira, sempre com um toque de fina e velada ironia. La Valse, por exemplo, obra de 1920, parece ser a metáfora da glória e destruição da Valsa Vienense, em seu significado não apenas musical, mas também simbólico e social.
Nove anos antes, porém, Ravel já havia feito investidas sobre esse gênero “elegante”, numa obra que frequentemente é negligenciada em função de outras, mais “vistosas”, por assim dizer. Data de 1911 a versão original, para piano solo, das Valsas Nobres e Sentimentais. A versão orquestral data do ano seguinte. O título da obra faz referência a duas coleções de pequenas valsas compostas por Schubert, entre 1823 e 1827: as Valsas Nobres (op. 77, D. 969) e as Valsas Sentimentais (op. 50, D.779). “Música de Salão”, embora nas mãos de Schubert tenham se tornado pequenas obras-primas, o destino dessas peças não era senão o de entreter os saraus da sociedade vienense e das reuniões de que o próprio Schubert participava.
É evidente, portanto, que Ravel tem em Schubert, para as Valsas Nobres e Sentimentais, seu primeiro modelo. No entanto, ele não toma as valsas de Schubert como paradigmas, mas como exemplos de um gênero que ele ironiza e desconstrói. O modelo principal desse processo, porém, não são exatamente as valsas de Schubert, mas as de Strauss e a valsa francesa dos salões elegantes de Paris. Embora o esquema rítmico da valsa permaneça sempre vívido nas oito pequenas seções de que se constitui esta a obra de Ravel, o que se percebe não é a onipresença da dança, mas sua evocação. A harmonia é a de um Ravel já totalmente vinculado ao século XX, que não tem medo de libertar a dissonância e que dela não faz apenas colorido, mas sonoridade em si mesma dotada de significado, o que levou o próprio Debussy a declarar, antes de conhecer-lhe a autoria, que se tratava de obra composta “pelo ouvido mais refinado que jamais poderia ter existido” (fato interessante foi a primeira apresentação dessa obra: ela foi tocada pelo pianista Louis Aubert, a quem fora dedicada, em um concerto da Sociedade Musical Independente. Nesse concerto, foi dada à audiência a tarefa de adivinhar os autores do programa. Para a obra de Ravel, o nome do compositor foi indicado pela grande maioria!). A versão orquestral, publicada no ano seguinte, foi feita com vistas a um balé intitulado “Adelaide, ou a linguagem das flores”.
Na ironia e no tratamento pessoal que Ravel confere à valsa, na proposta de desintegração de um gênero que efetiva e simbolicamente já agonizava nas primeiras décadas do século XX, na harmonia francamente moderna, que o afasta da tonalidade, na orquestração sempre original e surpreendente, as Valsas Nobres e Sentimentais atestam a importância de Ravel na música do século XX e de novos caminhos que ela há de tomar.
Moacyr Laterza Filho
Pianista e cravista, Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC Minas, professor na Universidade do Estado de Minas Gerais e na Fundação de Educação Artística.