A Sagração da Primavera

Igor STRAVINSKY

(1913, revisado em 1947)

 

Instrumentação: 2 piccolos, 3 flautas, flauta alto, 4 oboés, 2 corne inglês, requinta, 3 clarinetes, 2 clarones, clarinete baixo, 4 fagotes, 2 contrafagotes, 8 trompas, 2 tubas tenor, trompete piccolo, 4 trompetes, trompete baixo, 3 trombones, 2 tubas, 2 tímpanos, percussão e cordas.

 

A Sagração da Primavera é uma obra atemporal. O argumento que lhe dá origem é um mergulho na noite dos tempos e sua realização musical parece ter, ao lado de uma evidente modernidade, algo de uma força atávica. Segundo o compositor, a ideia da composição ocorreu a partir da visão de uma jovem, circundada por sábios, em uma dança ritual que culminaria em sua morte – oferenda para tornar propício o deus da primavera. O passo seguinte foi dado quando Stravinsky e seu amigo Nikolai Roerich – pintor e intelectual interessado na antiguidade eslava – idealizaram o cenário de danças e de ritos encantatórios que serviria de fio condutor para a obra. Desta, costuma-se lembrar do argumento ou das audácias musicais mais diversas – harmonias, texturas, invenções orquestrais, rítmica –, mas nem sempre se dá ênfase ao contexto em que veio a público pela primeira vez. Muito embora as obras anteriores – O Pássaro de Fogo e Petrushka –, encomendadas pela companhia dos Balés Russos, já apresentassem facetas particulares da linguagem stravinskyana – a paleta orquestral do primeiro e, do segundo, uma evidente vivacidade rítmica –, é com a Sagração que ocorre, de modo peculiar, a eclosão de uma rítmica arrebatadora e de um tratamento motívico particular, ao qual se subordinam breves fragmentos melódicos.

 

Seja como for, o tumulto que acompanhou a estreia da Sagração (em 29 de maio de 1913, no Théâtre des Champs-Elysées) – verdadeira batalha entre defensores e detratores – pode ser atribuído, apenas em parte, à música. A ela somaram-se uma coreografia e um figurino surpreendentes, além do argumento, de um primitivismo desafiador frente a convenções morais e sociais. Reações adversas partiram também da imprensa. Um editorial de Le Figaro referiu-se aos “bárbaros russos” que tinham à frente Nijinsky, uma espécie de “Átila da dança” e, à troupe, como desconhecedora “dos bons costumes”. Stravinsky, no entanto, relatou, após a estreia: “estávamos excitados, zangados, desgostosos e… felizes”.

 

Apresentada como obra de concerto, A Sagração da Primavera não perde a força da evocação, presente nos títulos de suas duas grandes partes, nos títulos sugestivos das diversas cenas e, mais ainda, na música impactante que, muito além de simplesmente descrever, parece incorporar a magia. A Introdução da Adoração da Terra já estabelece um elo entre o moderno e o imemorial, quando o compositor confia ao registro extremo agudo do fagote uma melodia de inspiração folclórica, envolta em harmonias que são o ponto de partida para inúmeras invenções nessa dimensão da linguagem musical. A Introdução apresenta uma complexidade textural crescente, em que materiais temáticos, apresentados após a frase inicial, justapõem-se para, ao final, apresentarem-se superpostos. O ouvinte se dá conta de que a Introdução está entregue aos sopros, com intervenções apenas pontuais das cordas, e possui uma rítmica fluida, pouco marcada. É precisamente o aspecto rítmico que apresenta um primeiro forte contraste, na cena seguinte – Augúrios Primaveris e Dança das Adolescentes –, com seus densos acordes insistentemente repetidos, nas cordas, marcadas pelas intervenções de oito trompas. Na segunda parte dessa cena, a trompa anuncia uma cantilena que vai ganhar corpo ao passar para o naipe das madeiras, antes que o tecido musical novamente se transforme. Em O Rapto há um retorno à trepidação rítmica, em breves fragmentos melódicos e com uma orquestração em tutti. Uma mudança brusca de atmosfera ocorre no início dos Círculos da Primavera, com os trinados das flautas servindo de moldura para a melodia oitavada pela requinta e pelo clarinete baixo. Esse é, também, um momento digno de nota, pela ambiência camerística.

 

A Sagração vale-se de um efetivo instrumental excepcionalmente numeroso, mas não lhe faltam momentos de meias-tintas e de transparências. As cenas que se seguem – O Jogo das Cidades Rivais e Cortejo do Sábio – são ligadas por uma melodia entregue a quatro tubas. Enquanto na primeira o compositor trata a orquestra em grupos antifonais, na segunda predomina um denso tutti. Um parêntese, simbolizando o Sábio – camerístico, de fagotes, contrafagotes, tímpano e dois contrabaixos – é colocado antes da Dança da Terra, onde a atividade rítmica toma a cena e invade toda a orquestra. Na Segunda Parte – O Sacrifício –, uma densa Introdução deixa entrever, em breves clareiras, a lenta formação de uma melodia que, nos Círculos Místicos das Adolescentes, ganha corpo em um conjunto de seis violas. É uma cena de sequência quase camerística, que contrasta com a exaltada Glorificação da Escolhida. A solenidade da Evocação dos Ancestrais, com seus acordes em bloco, é seguida da Ação Ritual dos Ancestrais, marcada pelo contraste de uma seção em que o corne inglês dialoga com a flauta contralto subitamente interrompida por um solo de trompas, em fortíssimo, no registro agudo. A Dança Sacral encerra a Sagração, com uma longa cena em rondó, que alterna um refrão marcadamente rítmico e coplas com fortes oposições texturais. É o ponto de convergência das forças acumuladas ao longo da obra, essa jovem centenária, cheia de energia, que nos fala de morte e renascimento. Para nós, resta o privilégio do arrebatamento e, pelos sortilégios da Sagração, a possibilidade de deixarmos o teatro “felizes, exaltados” e … encantados.

 

Oiliam Lanna
Compositor e regente, doutor em Linguística (Análise do Discurso), professor da Escola de Música da UFMG.

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