Sinfonia nº 9 em Dó maior, D. 944, “A Grande”

Franz SCHUBERT

(1828)

 

Instrumentação: 2 flautas, 2 oboés, 2 clarinetes, 2 fagotes, 2 trompas, 2 trompetes, 3 trombones, tímpanos e cordas.

 

A breve vida de Schubert transcorreu em rotina de muito trabalho e pouco reconhecimento público. Homem afável, mas muito tímido, sempre lhe foram negados cargos musicais oficiais. Viveu modestamente, mas livre para dedicar todo seu talento à composição. Quanto às suas sinfonias, hoje estão definitivamente incorporadas ao repertório das grandes orquestras. Entretanto, com exceção das primeiras, escritas na adolescência e interpretadas pela pequena orquestra de estudantes do Stadtkonvikt de Viena, Schubert jamais pode ouvi-las, o que torna ainda mais admirável seu inato senso do colorido orquestral e das gradações sonoras. O desenvolvimento do compositor no gênero sinfônico construiu-se gradativamente, uma vez que as características de seu gênio predispunham-no às pequenas formas musicais, sobretudo para a canção.

 

Entre as sinfonias de Schubert, a nona é a mais pessoal. Oferecida com uma elogiosa dedicatória à Sociedade Filarmônica de Viena, foi considerada “muito pesada e muito difícil”. Onze anos decorridos da morte do compositor, Robert Schumann, visitando a humilde casa de Ferdinand Schubert, irmão do compositor, reencontrou, entre outros manuscritos, a partitura da sinfonia rejeitada e providenciou sua estreia na Gewandhaus de Leipzig sob a direção de Felix Mendelssohn.

 

Em 1928, a morte de Beethoven era muito recente. Schubert certamente sentia a importância do legado sinfônico de seu grande antecessor; o desafio formal assumido pelo jovem compositor ao escrever sua última sinfonia não se deve aferir pelas mesmas normas que regem as sinfonias de seu ídolo. A natureza lírica e expressiva dos longos temas melódicos schubertianos torna-os incompatíveis com o modelo de desenvolvimento típico de Beethoven, calcado no trabalho exaustivo e engenhoso de ideias concisas e determinantes. Por outro lado, apesar da amplitude, a Grande é uma das obras mais concentradas e equilibradas de Schubert, escapando às digressões e fantasias que comumente preenchem suas vastas arquiteturas instrumentais. Pela maneira com que concilia a forma clássica e o espírito romântico, essa sinfonia, única sob muitos aspectos, ocupa uma estratégica posição histórica.

 

Após a morte de Beethoven, a Sinfonia Romântica trilhou dois caminhos principais: em uma direção, Mendelssohn, Schumann e Brahms adaptaram-na à expressão mais intimista do romantismo, reduzindo as proporções dos movimentos intermediários. Em outra vertente, Berlioz e Liszt, para fugir do clássico modelo beethoveniano, adotaram os programas extramusicais dos poemas sinfônicos. A grande sinfonia de Schubert, por muito tempo ignorada, aponta para o futuro e possui atributos (como a tendência para a unidade cíclica, a disposição formal em amplos espaços harmônicos e a fluidez do discurso melódico) comuns às sinfonias de Bruckner e Mahler.

 

Na introdução (Andante) do primeiro movimento, as trompas em uníssono apresentam um nobre tema, sutil na dessimetria de sua construção, e do qual derivam os vários motivos do vigoroso Allegro ma non troppo seguinte. Longo e impetuoso, esse movimento desenvolve-se pelos diversos grupos instrumentais com crescente tensão, desencadeando irresistível ascensão até o stretto final da coda, quando, em tempo mais rápido, reapresenta-se o tema inicial das trompas, como um hino radioso e triunfal.

 

O segundo movimento, (Andante con moto) imenso Lied composto de cinco seções e uma coda, é um dos trechos mais trabalhados e líricos da sinfonia. O tema principal surge no oboé, sobre o acompanhamento staccato das cordas, em ritmo de marcha lenta. A sua feição cantabile é interrompida abruptamente pelo fortíssimo orquestral que, durante todo o movimento, assumirá o papel de elemento contrastante. Schubert explora com sabedoria as transições entre as diversas seções. Particularmente mágica é a atmosfera de apaziguamento, de espera quase muda, antes da volta do primeiro tema.

 

O Scherzo (Allegro vivace) possui a clássica estrutura arquitetônica tripartida (ABA), mas oferece muitas soluções inventivas. As partes extremas estão na tonalidade principal da sinfonia (Dó maior). Após uma abertura quase agressiva, surge uma série de melodias, alegremente ritmadas, com uma sucessão de modulações engenhosas. O trio central (Lá maior) consiste em uma única melodia – um Ländler vienense de raízes populares, totalmente confiado aos sopros, enquanto às cordas cabe o acompanhamento.

 

O quarto movimento (Allegro vivace), de mais de mil compassos, fecha impetuosamente a sinfonia. O motivo inicial possui dois breves e incisivos desenhos rítmicos, diferenciados por violento contraste forte/piano, que impulsionam todo o andamento em assombrosa e ininterrupta sucessão de ondas rítmicas. Apresentado pelo oboé, o segundo tema, embora mantenha a pulsação inicial, é mais tranquilo, possui caráter popular e desempenha importante papel no desenvolvimento. As nítidas citações (nas fanfarras) da Ode à Alegria de Beethoven não possuem caráter alusivo, rapsódico — derivam logicamente do material temático do trecho, ao qual se integram de maneira perfeitamente orgânica. A reexposição, em admirável demonstração de habilidade harmônica, começa na inesperada tonalidade de Mi bemol maior. A coda inicia-se com um trêmulo suave dos violoncelos. Apresenta um esquema rítmico de quatro notas e persiste por duzentos compassos, gigantesca, monumental, conduzindo a marcha até a impressionante apoteose final.

 

Paulo Sérgio Malheiros dos Santos
Pianista, Doutor em Letras, Professor na UEMG, autor dos livros Músico, doce músico e O grão perfumado: Mário de Andrade e a arte do inacabado. Apresenta o programa semanal Recitais Brasileiros, pela Rádio Inconfidência.

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