Sinfonia nº 7 em Dó maior, op. 60, “Leningrado”

Dmitri SHOSTAKOVICH

(1941)

Instrumentação: 3 flautas, 3 oboés, 4 clarinetes, 3 fagotes, 8 trompas, 6 trompetes, 6 trombones, tuba, tímpanos, percussão, piano, 2 harpas, cordas.

 

Depois da efervescente turbulência – pródiga em originalidade, em experimentações e na descoberta de novas possibilidades e novas orientações estéticas – que marca a música dos primeiros anos do século XX, a atividade criadora parece ter feito um movimento de retração. Seria como dizer que há uma espécie de chamada à ordem sobre a “insolência” criativa de nomes como Debussy, Stravinsky e Webern que conquistaram, cada um a seu modo, um novo infinito de caminhos possíveis para a linguagem musical. As profundas consequências sociais e políticas que trouxeram a Primeira Guerra Mundial (1914–1918), de um lado, e a Revolução Russa (1917), de outro, parecem ter freado esse entusiasmo criativo com que foi pintado o início do século XX. No entanto, há que se marcar com ênfase que esse movimento aparentemente reacionário da criação musical é também um fenômeno histórico, revelador de um novo posicionamento estético, que, por sua vez, não deixou de assimilar grande parte das conquistas dos movimentos anteriores e que orientou, em positivo ou em negativo, grande parte da música que o sucedeu.

 

As tendências neoclássicas que despontam a partir desse período, a que se rende inclusive o próprio Stravinsky, parecem ser a orientação principal de uma tentativa de reorganizar a pulverização de toda uma tradição musical, subvertida pelos compositores que abriram os Novecentos. É assim que surgem, a partir desse período, nomes como Prokofiev, que, confessadamente neoclássico e grande melodista, trouxe a linguagem moderna mais próxima da sensibilidade popular, e Shostakovich, que o sucedeu e que, com ele, foi um dos maiores representantes da Escola Soviética.

 

A linguagem de Shostakovich é, nesta esteira neoclássica, fortemente embasada em uma releitura da estética romântica. Pode-se mesmo dizer que em Shostakovich há um retorno ao mundo tonal, relido e recuperado a partir de uma espécie de expressionismo ultrarromântico, que ele filtra de Mahler e de Berg. Fazendo uso franco de elementos atonais, usando largamente do cromatismo e com algumas (raras) investidas na bitonalidade, Shostakovich relê, com as lentes da modernidade, um universo tonal já em fase de esfacelamento e preocupado em dar novos rumos à linguagem musical. É a esse universo que Shostakovich volta os olhos e é nele que encontra elementos de significação que lhe possam garantir a expressão pessoal de seu trabalho criador. Na forma, mais ou menos na mesma perspectiva que Prokofiev, Shostakovich não hesita em recuperar os procedimentos clássicos: em Bach ele reencontra os prelúdios e as fugas, em Beethoven, os quartetos, em Mahler, as sinfonias. De seus compatriotas, à parte Prokofiev, Shostakovich admira particularmente Mussorgsky (de quem faz reorquestrações de duas óperas) e, paradoxalmente, Stravinsky, por quem ele tem profundo respeito como compositor, mas a quem execra como pensador. Além do contexto musical em que está imerso e de suas predileções pessoais, outro fator parece ter norteado fortemente a opção estética de Shostakovich: as pressões do Partido Comunista, então em pleno regime stalinista. Após as duras críticas de seus primeiros trabalhos (nomeadamente sua ópera Lady Macbeth de Mtsensk, em cuja estreia esteve presente o próprio Stalin), foi somente a partir de sua quinta sinfonia que ele começou a desenvolver uma linguagem que, aceita pelo Partido, lhe valeu o elogio de “verdadeiro artista soviético”.

 

Das quinze sinfonias que compôs, a sétima, estreada em 1942, tornou-se extremamente popular tanto na Rússia quanto no Ocidente, como símbolo de resistência ao Nazismo. Trata-se da sinfonia mais longa do compositor, e aí é nítida a recuperação de algumas de suas fontes principais: Mahler, Bruckner e Stravinsky. Talvez por isso, a despeito de seu sucesso, a crítica e o meio musical no Ocidente não a tenham recebido bem, taxando-a, inclusive, de excessivamente emocional, em detrimento da coerência sinfônica, um híbrido de Mahler e Stravinsky. De fato, Shostakovich lança mão, nessa sinfonia, de “imagens musicais” que, estilizadas, a aproximam de um realismo quase pictórico que não é avesso ao gosto da estética soviética: fanfarras, marchas, ostinatos e citações de temas folclóricos. Além disso, a obra, dedicada à cidade de Leningrado e composta no ano em teve início o sítio de novecentos dias a essa cidade pelas tropas nazistas, é polvilhada de temas que, à parte a sua função estrutural, também aderem a essa concepção quase realista de uma música que nasce no seio dos horrores da guerra. O famoso “tema da invasão”, no primeiro movimento, foi concebido pelo autor como o “tema de Stalin”. Mais tarde, porém, foi tomado como um tema “anti-hitlerista”.

 

Seja encarada como retrato da perplexidade ante as barbaridades do Segundo Conflito Mundial, seja tomada apenas como música, não necessariamente atrelada a qualquer temática extramusical, é inegável que essa obra está imbuída da mentalidade contraditória e conflituosa que norteou e ainda norteia o homem de nossos tempos.

 

Moacyr Laterza Filho
Pianista e cravista, Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa, professor da Universidade do Estado de Minas Gerais e da Fundação de Educação Artística.

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