Sinfonia nº 1 em Ré maior, “Titã”

Gustav MAHLER

(1855/1888)

Instrumentação: 3 piccolos, 4 flautas, 4 oboés, corne inglês, requinta, 4 clarinetes, clarone, 3 fagotes, contrafagote, 7 trompas, 4 trompetes, 3 trombones, tuba, 2 tímpanos, percussão, harpa e cordas.

 

Mário Quintana, em trecho citado na orelha da terceira edição de sua Nova Antologia Poética (Ed. Globo, 1985), refere-se a si e à sua poesia, com a lucidez que lhe é habitual, nos seguintes termos: “na música de Mahler, como na minha poesia, há uma inquietação terrível, aqueles motivos que nunca chegam… Que nunca chegam a uma solução… Mas pelo menos acho que expressamos nossa angústia… Ele na sua música, eu na minha poesia”. É raro ver tamanha agudeza de percepção: de fato, embora toda grande generalização seja sempre um risco, pode-se dizer que tudo em Mahler é polvilhado, em maior ou menor grau, de uma angústia insolúvel: mesmo em suas citações de temas folclóricos, não raro festivos, depreende-se essa sensação de inquietude a que se refere Quintana – certo grau de absurdo (no sentido poético do termo) que gera dilaceramentos melódicos.

 

Quintana, sem saber, toca num dos aspectos mais autênticos da linguagem mahleriana: em seu tratamento temático, Mahler evita quase totalmente a repetição ou reexposição literal. Assim, fazendo uso de processos muito refinados de variação, Mahler faz renovar a melodia sem que ela perca de todo sua identidade. Em seus processos de desenvolvimento melódico, por sua vez, há uma frequente desconstrução e dissolução da melodia, em lugar de sua ampliação ou reelaboração, procedimento que já faz antever aquilo que seria levado a graus exponenciais pela Segunda Escola de Viena.

 

Isso possa talvez explicar um pouco da sensação de falta de lugar que acomete o ouvinte, para citar apenas um exemplo, diante do terceiro movimento da Sinfonia nº 1: a sucessão de fragmentos de temas tradicionais judaicos elabora uma espécie de mosaico temático, pleno de contrastes, que posiciona o ouvinte numa espécie de atitude de assombro, ante uma aparente incompletude que parece nunca se solucionar. Além disso, essas evocações de temas festivos são colocadas, nesta obra, na sequência do trabalho inusitado com outro tema folclórico da tradição ocidental (a que os franceses intitulam Frère Jacques): esse tema é transformado em uma marcha fúnebre e exposto pelos timbres mais graves da orquestra, a começar por um solo de contrabaixo. Percebe-se, com isso, certo trabalho irônico que, por sua própria natureza traduz, ele mesmo, aquela angústia a que se referia Quintana. Se esse aspecto de sua linguagem pode ter sido determinado por sua biografia ou por sua personalidade, são especulações de outra ordem. No entanto, são raros os casos em que, na história da música ocidental, observa-se tamanha aderência entre uma e outra.

 

A Sinfonia nº 1 em Ré maior foi concluída em 1888, tendo sido estreada em Praga, no ano seguinte, como um poema sinfônico. Em 1893, o compositor a rebatizou “Titã, um Poema Sinfônico em Forma de Sinfonia”. O título se deve a uma personagem romântica do poeta Jean-Paul Richter. O herói de Richter, diferentemente de seus homônimos clássicos, ocupa-se, no poema, de diálogos com a natureza e com suas aventuras não realizadas. Reelaborada e revista diversas vezes, essa obra só em 1906 tomou sua forma definitiva, na qual Mahler suprimiu um movimento inteiro. Seguindo a tradição do poema sinfônico, Mahler estabelece um roteiro literário que, embora possa ter sido determinante para a elaboração da obra, não é fundamental para a sua compreensão, no contexto da linguagem mahleriana. Não deixa de ser interessante, porém, conhecer as referências literárias que o compositor atribuiu originalmente aos seus movimentos: os dois movimentos iniciais corresponderiam simbolicamente a “dias da juventude – flores, frutos e espinhos”, o primeiro deles tendo sido batizado de “Primavera sem Fim”. Aos dois movimentos seguintes, Mahler denominou “Comédia Humana”, o primeiro deles intitulado “Uma marcha fúnebre à maneira de Callot” (gravurista do século XVIII) e o último, simbolizando a trajetória do herói de Richter, que vai “do Inferno ao Paraíso”. Essas referências literárias, porém, foram suprimidas na versão final, de 1906.

 

No conjunto das sinfonias de Mahler, distinguem-se tradicionalmente dois grupos: o das quatro primeiras e o das sinfonias restantes. Àquele, costuma-se também denominar “Sinfonias Wunderhorn”, por fazerem direta ou indiretamente referência a Des Knaben Wunderhorn, compilação de poemas e canções populares alemães feita por Achim Von Arnim e Clemens Brentano. De fato, Theodor Adorno chamou a atenção para a “dimensão novelesca” dessas sinfonias. Ademais, na primeira delas, Mahler faz citações completas ou fragmentárias de outra obra sua, composta entre 1883 e 1885: Lieder eines fahrenden Gesellen (Canções de um Andarilho). Das quatro canções que compõem esse ciclo, a segunda oferece o tema principal do primeiro movimento da Sinfonia, além de outras citações esparsas no todo da obra.

 

Mahler construiu sua linguagem dividido entre o século XIX e o século XX. Daí, talvez, outro elemento que explique a sensação de angústia gerada por sua música, em que, nas palavras do musicólogo Roland de Candé, “as fanfarras e as marchas evocam a morte; as valsas e os ländler, a loucura”.

 

Moacyr Laterza Filho
Pianista e cravista, Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa, professor da Universidade do Estado de Minas Gerais e da Fundação de Educação Artística.

anterior próximo