Sinfonia nº 9 em Ré maior

Gustav MAHLER

(1909/1910)

Instrumentação: piccolo, 4 flautas, 4 oboés, corne inglês, requinta, 3 clarinetes, clarone, 4 fagotes, contrafagote, 4 trompas, 3 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos, percussão, 2 harpas, cordas.

 

As sinfonias de Mahler convidam-nos a bem mais que um deleite. Exigem atenção, retorno, escuta ativa e participativa. Parecem estabelecer, há mais de um século, um diálogo inconcluso, do qual somos chamados a tomar parte, não para completá-lo, mas para descobrir novas interrogações. E, ainda que não conhecêssemos qualquer dado a respeito do contexto em que foram concebidas, ainda que não tivéssemos a menor informação acerca da biografia do compositor, essas obras certamente nos surpreenderiam. Para dizer da maneira mais simples e espontânea, nelas parecem pulsar, de forma contundente, vastos cenários das alegrias e tristezas da vida… de todos nós. Associar cada sinfonia de Mahler à bonança ou às intempéries de sua própria existência é um exercício que parece frutífero, mas reduz o compositor a um mundo fechado, de quem dá conta ou que se ocupa apenas de suas idiossincrasias. Mahler olha bem mais além. Paradoxalmente, encontra cada um de nós quando mergulha em si mesmo.

 

Ouvir, em concerto, uma sinfonia de Mahler, é uma rara oportunidade de celebração, um ritual em que nos colocamos em comunhão com os ideais do compositor, com a meditação sinfônica que nos leva a participar de sua visão particular do humano. Mas é também um exercício de escuta musical que requer esforço e acuidade. Cada instrumento é explorado na plenitude de sua capacidade expressiva e, nesse sentido, Mahler não nega a tradição, mas a leva a limites até então impensados. Por seu turno, a orquestração, em seus momentos mais densos, veicula não um, mas vários materiais temáticos que se superpõem. Além disso, como se não bastasse a trama polifônica, a variedade de timbres sob a qual um mesmo material temático é frequentemente apresentado enriquece uma única melodia, como se a iluminasse de ângulos diversos. Mahler antecipa, de perto, a Klangfarbenmelodie (Melodia de timbres) da Segunda Escola de Viena, em um entretecido composicional complexo que seria explorado, de forma sistemática, mas com influência nitidamente mahleriana, em obras como o opus 6, para orquestra, de Alban Berg, ou ainda em obras camerísticas, como Noite transfigurada, para sexteto de cordas, de Schoenberg.

 

A complexidade textural levou mesmo esses compositores a diferenciar, para os intérpretes, as funções dos materiais temáticos, com as anotações Hauptstimme (voz principal) e Nebenstimme (voz secundária). Na Nona Sinfonia, essas vozes criam, como em um quadro, verdadeiras perspectivas sonoras e podemos acompanhar a complexidade textural crescente já no tema de abertura que, aos poucos, começa a exigir uma espécie de audição difusa. Mesmo no segundo movimento, a textura é frequentemente cerrada, e o Ländler austríaco se distancia da expressão despreocupada de uma simples alegria de viver. Mahler, no entanto, sabe não apenas preparar, conduzir o ouvinte em direção às texturas espessas, como sabe também equilibrá-las com passagens transparentes, mesmo em tutti, como ocorre na seção central do Rondo – Burleske ou na elegia das cordas, no Adagio final.

 

Mahler chega, com uma espécie de trilogia da despedida – A Canção da Terra, a Nona Sinfonia e uma sinfonia inacabada, a Décima – ao final de uma busca obstinada. Dialoga com a tradição, assimila, transforma, depura, como podemos verificar no diálogo entre suas próprias criações. Última obra concluída de Mahler, a Nona Sinfonia parece um longo parêntese entre dois silêncios. Nasce em dinâmicas suaves, ao apresentar fragmentos melódicos que constroem pacientemente o tema de abertura, antes que ele ganhe toda a orquestra. Desse processo de elaboração temática lembrou-se Alban Berg na primeira peça para orquestra de seu op. 6 (Três peças para orquestra), mesmo porque havia examinado detidamente a partitura da Sinfonia, recebida das mãos do próprio compositor, e manifestou sua admiração, afirmando que o movimento inicial da Nona era o que de “mais celestial” Mahler havia escrito.

 

Vale ressaltar que o diálogo com a obra mahleriana, empreendido pelas gerações posteriores, a partir dos compositores da Segunda Escola de Viena, dá continuidade ao diálogo empreendido pelo próprio Mahler, a partir de um vasto repertório que ele frequentava. Assim, na lenta elaboração temática deste Andante Comodo, antes do primeiro fortissimo, a presença insistente de uma célula melódica em intervalos de segundas descendentes faz lembrar, talvez não por acaso, o início da Sonata para piano Les Adieux, ainda mais porque está entregue de modo particular às trompas, evocadas na introdução daquela obra beethoveniana. A menção à despedida é também uma reiteração, uma lembrança, pois o mesmo motivo melódico já havia pontuado as últimas intervenções da voz na obra anterior de Mahler, Das Lied von der Erde (A Canção da Terra), precisamente no movimento intitulado Der Abschied (O adeus). Ao final da Nona, o parêntese se fecha, longa e lentamente. A obra parece não querer terminar, em um processo inverso ao da elaboração inicial, e as cordas, quase inaudíveis, reconduzem a Sinfonia ao silêncio do qual havia nascido.

 

Oiliam Lanna
Regente e compositor, Doutor em Letras (Análise do Discurso), professor da Escola de Música da UFMG

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