Tributo a Portinari

César GUERRA-PEIXE

(1991)

Instrumentação: piccolo, 2 flautas, 2 oboés, 3 clarinetes, 2 fagotes, 4 trompas, 3 trompetes, 3 trombones, tímpanos, percussão, cordas

 

Cândido Portinari (1903-1962) e César Guerra-Peixe correram trajetórias semelhantes. Viveram o Brasil modernista, nacionalista e folclórico, do qual retrataram a face mais popular, culturalmente rica, embora miserável e faminta. Portinari, filho de imigrantes italianos, nasceu numa fazenda de café em Brodowski, São Paulo. Guerra-Peixe, filho de imigrantes portugueses, nasceu em Petrópolis, Rio de Janeiro. Ambos viveram a infância humildemente, época em que neles aflorou o talento artístico, reconhecido pelas famílias. Ainda jovens, se aventuraram no Rio de Janeiro a fim de se aprimorarem. Em épocas diferentes, deixaram em Belo Horizonte o rastro permanente de suas artes amadurecidas. Ambos se engajaram no movimento comunista, atitude quase obrigatória para os que optavam por fazer de sua arte uma denúncia social. No fato de se identificarem na consciência dos problemas sociais brasileiros reside, talvez, o germe da simbiose dos dois artistas em uma única obra: Tributo a Portinari. Última grande obra de Guerra-Peixe, escrita em 1991 sob os auspícios da Fundação Vitae, foi, segundo ele, idealizada já em 1986, após apreciar quatro pinturas de Portinari.

 

Infelizmente não se pode afirmar a qual quadro corresponde cada movimento dessa suíte orquestral. Pode-se, no entanto, fazer um passeio pelas telas de Portinari, usando a imaginação em cada episódio sinfônico. A música do primeiro movimento – Família de Emigrantes –, obscura, sofrida e marcada por percussão insistente, poderia ter sido inspirada no dramático quadro Família de Retirantes, de 1939, ou no famoso painel Retirantes, pintado em 1944. Os retirantes são temática recorrente na obra de Portinari, principalmente após os anos 1930, quando ele retorna ao país e expressa sua postura social, estampando em mais de 40 telas batizadas Retirantes o trágico cotidiano dos que tentam escapar à miséria. Portinari retratou a figura de espantalhos em quase uma centena de telas, em sua maioria pintadas na década de 1940 e influenciadas por Picasso. No retrato sonoro de Guerra-Peixe, o Espantalho, rebelde e inconstante, não suporta o sol quente e se agita até despencar. O movimento seguinte – Enterro na rede –, lento e meditativo, foi inspirado por um dos sete quadros homônimos assinados pelo pintor: “tenho pena dos que sofrem e gostaria de ajudar a remediar a injustiça social existente. Qualquer artista consciente sente o mesmo…”, disse Portinari a Vinícius de Moraes. No último movimento – Bumba-meu-boi –, festa retratada em muitos quadros de Portinari, a música de Guerra-Peixe adquire traços ainda mais nordestinos, alusivos à época de sua participação no Movimento Armorial, em Pernambuco, na década de 1970.

 

Tributo a Portinari foi estreada em 1993 no Teatro Municipal do Rio de Janeiro pela Orquestra Sinfônica Brasileira durante a X Bienal de Música Brasileira Contemporânea. Na ocasião, o compositor foi agraciado com o Prêmio Nacional de Música do Ministério da Cultura. Era uma homenagem dupla: Guerra-Peixe, que vivia seu último ano, e Portinari, que falecera trinta anos antes, intoxicado pelas tintas de suas próprias telas. Um tributo a dois titãs da cultura brasileira que nunca se encontraram, mas cruzaram seus caminhos na eternidade da nossa arte.

 

Marcelo Corrêa
Pianista, Mestre em Piano pela Universidade Federal de Minas Gerais e professor na Universidade do Estado de Minas Gerais.

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