| 6 jul 2017
"(...) a Filarmônica de Minas Gerais é a melhor coisa que temos no Brasil, em termos de cultura (...)"
Em entrevista à Bravo!, o sempre querido pianista Nelson Freire falou sobre a sua história, planos futuros e também sobre a nossa Orquestra e a Sala Minas Gerais. Abaixo reproduzimos a entrevista na íntegra. Ela também pode ser lida no portal da publicação, clicando AQUI.
Em entrevista à Bravo!, o pianista fala da infância, da grandeza da música e tece loas à Filarmônica de Minas Gerais
por Beatriz Goulart | 3 de julho de 2017
Das raras entrevistas que concedeu, certamente, como agora, algumas perguntas ficaram no ar em meio ao frenesi de palavras e devotos silêncios. Assim, com a memória afiada, Nelson Freire, um dos maiores pianistas do século 20, após interpretar o Concerto para piano nº 4, de Beethoven, na Sala Minas Gerais, com a Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, dedicou à Bravo 25 minutos de conversa sobre suas memórias e projetos. Falou do seu orgulho da Filarmônica e do trabalho do regente Fabio Mechetti. Mostrou-se um homem grato e cordial. O artista fez da matéria o que quis. Ele pode.
Quando você sentiu que deu um salto essencial no aprendizado, talvez capturado pelo espírito da música?
Estou sempre procurando dar os saltos, pois a música, claro, é a coisa mais importante da minha vida. Ela já me salvou de muitas situações fortes, dramáticas, e acho que, se não fosse a música, eu nem estaria aqui agora falando com você.
É mesmo?
Ela teve um papel fundamental, sobretudo na infância, pois eu era muito doente, e o piano foi o meu refúgio — que, eventualmente, eu gostava de compartilhar. Contam que, nessa época, ainda pequenininho, em Boa Esperança, eu forçava os amiguinhos a irem me assistir. Eles ficavam lá sentados, e eu começava a dar meus recitaizinhos, às vezes um ia embora de mansinho, talvez mais a fim de jogar bola, né?
O piano ainda é um brinquedo?
A música pode ser um brinquedo, eu me divirto às vezes. Mais do que um brinquedo, é um prazer. É algo que posso fazer sozinho, o que é bom, embora também faça parte estabelecer uma comunicação, alimenta o desejo de fazer melhor e traz reconhecimento.
No documentário do João Moreira Salles, observa-se que você foi acompanhado por olhos e ouvidos muito atentos. Sobretudo na carta de seu pai que é lida no filme, em que ele conta sobre a mudança da família, para que você pudesse dar continuidade aos seus estudos de piano, fica visível o grande empreendimento afetivo que talvez tenha te propiciado viver a música na plenitude…
Sim, meus pais foram fundamentais. Comecei muito cedo, e se nesse princípio eu tivesse sido mal orientado, poderia ter sido um menino prodígio explorado por professores. Graças a Deus nada disso aconteceu, tive uma infância a mais normal possível, ia à escola, frequentava a praia. Minha mãe ia a todas as minhas aulas até eu ir para a Europa. Ela nunca deixou de me acompanhar e prestava atenção em tudo o que era dito. Depois, chegava em casa e cobrava. (risos). Aos 5 anos, minha família toda mudou-se para o Rio por minha causa. Foi uma transferência incrível, penso nisso até hoje, pois meus pais já tinham uma certa idade — meu pai tinha 46 anos, era farmacêutico em Boa Esperança e até mudou de profissão, foi ser gerente de banco, deixou a farmácia. Éramos 9 irmãos e havíamos passado a vida inteira numa cidadezinha pequena, agradável, onde todo o mundo se conhecia. Eu causei uma revolução na vida deles, e eles tiveram uma coragem enorme de fazer isso por causa de um menininho de 5 anos, mudar-se para o Rio de Janeiro, que era outro mundo, uma capital da República!
Outro momento adorável do documentário foi o seu olhar para a dança de Rita Hayworth…
Ela dança maravilhosamente, e eu gosto muito de cinema, sobretudo de filmes dos anos 40 e 50. Como já assisti a praticamente todos, vivo reprisando. Fora isso, gosto da natureza, de vários tipos de culinária, de caminhar e de não fazer nada…
Há um som da natureza, em especial, que te inspira?
Gosto muito do som do silêncio, acho maravilhoso.
Na música, o que mais o enternece?
A música é uma linguagem que vai além das palavras e que pode ser entendida e sentida por todos os povos. Posso tocar com uma orquestra em Belo Horizonte, com uma outra orquestra na China, estamos tocando Beethoven e sentindo praticamente a mesma coisa. A música tem esse poder de transmissão universal, talvez por ser etérea, não se pode segurar a música, ela precisa ser ouvida.
Vamos falar então do seu concerto e da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais.
Tenho um orgulho enorme dessa sala, acho que a iniciativa da Filarmônica de Minas Gerais é a melhor coisa que temos no Brasil, em termos de cultura, dos últimos dez anos. Para mim é a melhor sala de concertos do país, tem um tamanho ideal, uma acústica perfeita, uma infraestrutura onde tudo funciona muito bem, tem dois pianos maravilhosos, que considero os melhores do Brasil, e uma orquestra de primeiro mundo! Além disso, a administração é impecável, com funcionários muito humanos. Às vezes, aqui no Brasil, quando a coisa dá certo, pode vir acompanhada de uma certa arrogância, o que não ocorreu aqui. Eu me sinto muito bem lá, a programação é muito atraente, e o regente Fabio Mechetti é maravilhoso. É também graças a ele que essa orquestra atingiu esse nível de primeiro mundo.
Isso significa que você vai voltar muito, não é?
Cada vez que estou lá tenho vontade de voltar a morar em Minas Gerais, voltar às raízes, porque sinto uma coisa muito forte quando vejo aquela terra vermelha, aquele céu azul, que só tem lá, aquele céu azul anil e aquelas nuvens gordas… Fora a gentileza do povo.
Seria possível arriscar uma equação, como se a técnica tivesse vindo da criança, a alma seria a descoberta do jovem e a concentração o ganho do homem que já olhou longamente as teclas?
Acho que isso deve estar mais ou menos junto, desde sempre. Acho difícil me equacionar, até hoje não me conheço bem. Acho que tem vários Nelsons em mim…
Quais são seus próximos planos?
Estou indo ao Japão, por apenas uma semana. Já tenho que ir me acostumando às 12 horas de diferença (do fuso horário). De lá já tenho que voltar para cá, mais 12 horas, e tocar no dia 15 de julho em uma homenagem a Villa Lobos no Teatro Municipal do Rio. No final de julho estou indo para a Europa, fazer vários recitais, um concerto atrás do outro, na França, na Polônia, em Varsóvia. Volto em setembro. É uma roda viva.