A pergunta não respondida

Charles Ives

(1906)

Instrumentação: 2 flautas, oboé, clarinete, trompete, cordas.

 

Música para madeiras, trompete e cordas. Suponhamos que, em vez do título pelo qual conhecemos a pequena joia orquestral de Charles Ives, o compositor a tivesse nomeado dessa forma bem menos sugestiva, considerando um dos efetivos instrumentais previstos na partitura. Desprovida da misteriosa evocação de seu título, ainda assim essa miniatura camerística nos surpreenderia. Seus elementos composicionais, ao estabelecerem três camadas ou extratos sonoros diferenciados, seriam percebidos sem esforço, já em uma primeira audição: um fundo de cordas, como um coral, extremamente lento, no qual um ouvinte habituado ao repertório tradicional clássico-romântico logo identificaria acordes familiares, associados a uma tonalidade maior; desenhos melódicos repetitivos, insistentes, enfatizando o intervalo de terça menor, através dos quais o solista se superpõe à cortina estática das cordas; intervenções de um quarteto de madeiras, cujas harmonias, sem a perspectiva tonal e em um crescendo de dissonâncias, estabelecem um diálogo com os enunciados do solista.

 

Para um ouvinte atento, a complexidade da obra e sua originalidade ressaltariam a partir da percepção mesma da superposição de diferentes linguagens harmônicas, como da rítmica flutuante, imponderável, em que as cordas e o solista parecem abolir os tempos do compasso, ou ainda das superposições métricas e de andamentos entre madeiras e cordas – estas, imóveis, e aquelas submetidas a transformações melódicas, harmônicas e texturais, apresentando-se gradativamente mais tensas, movidas e sonoras. Se acrescentarmos à experiência auditiva dados do Prefácio de Ives, publicado com a partitura, nossa admiração pela obra será ainda maior. Para Ives, trata-se de uma “Paisagem Cósmica”, na qual as cordas evocam “O Silêncio dos Druidas – que sabem, veem e nada ouvem” – e o quarteto das madeiras representa a busca por “Respostas” à “Eterna Pergunta da Existência”, formulada pelo solista. Ainda no Prefácio, o compositor aponta possibilidades de colocação de instrumentos fora do palco, bem como espacialização na disposição instrumental. Observa também que as madeiras não precisam obedecer, rigorosamente, os momentos das entradas previstas na partitura.

 

Estamos, portanto, diante de uma obra de grande complexidade, desafiadora e mesmo refratária ao labor analítico – sobretudo a abordagens que tentem conformá-la a esse ou àquele sistema de análise –, obra-prima de horizontes vastos – politonalidade, polimetria, um certo grau de aleatoriedade, liberdade e rigor, simbolismo, transcendência. Depois de seis insistentes perguntas, que as tentativas confusas das madeiras se mostram incapazes de responder, uma última vez o solista formula a questão perene que, agora, mergulha no insondável, no “Imperturbável Silêncio”. A singularidade de Ives, com A pergunta não respondida, parece fazer uma alegoria musical às palavras de Varèse: “Em arte, um excesso de razão é mortal. É a imaginação que dá forma aos sonhos”.

 

Oiliam Lanna
Compositor, professor da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais.

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