O quebra-nozes, op. 71

Piotr Ilitch TCHAIKOVSKY

(1892)

Instrumentação: 2 piccolos, 3 flautas, 2 oboés, corne inglês, 2 clarinetes, clarone, 2 fagotes, 4 trompas, 2 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos, percussão, 2 harpas, celesta, cordas.

 

Os três grandes balés de Tchaikovsky – O lago dos cisnes (1876), A bela adormecida (1889) e O quebra-nozes (1892) – constituem o repertório básico imprescindível para as grandes companhias de dança clássica e o ponto culminante do gênero no final do século XIX. Criado no ano anterior à morte do compositor, O quebra-nozes agrupa-se entre as obras de sua plena maturidade. Prestando homenagem à Infância e à Fantasia, representa um momento de serenidade, antes do subjetivismo sombrio da derradeira Sinfonia Patética.

 

O balé divide-se em dois atos, antecedidos por uma Abertura em miniatura. Nessa pequena introdução, a orquestração dispensa os violoncelos e os contrabaixos, como se Tchaikovsky quisesse valorizar as vozes “infantis” das cordas:

 

Era uma vez, em uma pequena cidade alemã, no final do século XVIII, um fabricante de relógios e brinquedos mágicos, o Sr. Drosselmeyer. Já idoso, ele morava com seu sobrinho, um jovem de 15 anos que lhe era muito dedicado. Quando trabalhava no palácio real, Drosselmeyer criou uma armadilha que matou a maioria dos ratos do povoado. Para se vingar, a poderosa Rainha dos Ratos transformou seu sobrinho em um quebra-nozes, com o formato de boneco de madeira. Para desfazer o feitiço, o rapaz teria que matar o Rei dos Ratos e conseguir o amor de uma jovem.

 

Na mesma cidade, morava o Sr. Stahlbaum, conselheiro municipal, com sua mulher e os filhos Fritz e Clara. A família se prepara para comemorar os quatorze anos da menina, na véspera do Natal, com a presença de vários amigos. Convidado para a festa, o relojoeiro Drosselmeyer resolve incluir entre seus presentes o Quebra-nozes. Afinal, seria uma boa oportunidade para desencadear um duelo entre o sobrinho e o Rei dos Ratos, quando os animais saíssem para roubar o pão de gengibre. E, quem sabe, talvez Clara se apaixonasse pelo heroico Quebra-nozes.

 

No Primeiro Ato, a música alterna Interlúdios (que acompanham o desenrolar dos acontecimentos) com ritmos de Danças (valsas, galopes, marchas, tarantelas) para os números coreográficos das crianças, dos adultos, dos brinquedos mecânicos, dos ratos e fadas. A ação se desenvolve na casa dos Stahlbaum, iluminada por muitas velas, ao redor da Árvore de Natal. Os convidados chegam. As crianças brincam desfilando ao ritmo de uma Marcha (na qual se destacam os instrumentos de metal) e logo se agrupam para dançar o pequeno Galope. Seus pais e outros pares preferem algo mais sério e se organizam para a Dança dos adultos.

 

Surge então o velho relojoeiro, e os meninos afastam-se amedrontados. Mas logo Drosselmeyer os conquista com seus presentes, exibindo os pequenos soldados, arlequins, colombinas, feirantes, cossacos e outros bonecos, reunidos na Dança dos brinquedos mecânicos.

 

Clara recebe o inusitado Quebra-nozes e fica especialmente feliz – a ponto do irmão e os outros meninos se sentirem enciumados e o danificarem, usando-o para quebrar a maior de todas as nozes. Clara cuida do boneco como de um verdadeiro doente e dança com ele, acalentando-o. Embora Fritz e seus companheiros perturbem a suavidade da música com a interferência de pequenos tambores e trompetes, o Quebra-nozes, curado, enfim adormece. Clara deita-o confortavelmente em uma caixa transformada em berço. Antes que a festa termine, há, como sempre, a Dança do Vovô Stahlbaum, que, desta vez, de tão animado, perdeu um sapato. Só então os convidados se retiram, as luzes se apagam, todos vão dormir.

 

Clara, porém, não consegue adormecer. Seus pensamentos se voltam para o Quebra-nozes. Ela se levanta e, sem barulho, chega à sala. Na obscuridade, a menina percebe os ratos em trajes de baile, fazendo a sua festa. O relógio anuncia meia-noite, e o Encantamento começa: a árvore de Natal torna-se enorme, os brinquedos ganham vida, o Quebra-nozes acorda. Um dos soldados de Fritz dá um tiro de espingarda, dando início à acirrada Batalha. Os ratos seguem as ordens de seu rei (trajado de Napoleão Bonaparte) e os soldados de chumbo são guiados pelo Quebra-nozes. Os dois comandantes se enfrentam. A princípio, o Rei dos Ratos parece levar vantagem; mas Clara atira-lhe na cabeça um de seus chinelos, e o Quebra-nozes fere o bandido com um golpe de espada. Os ratos reconhecem a derrota e abandonam a luta.

 

Aclamado como herói, o Quebra-nozes convida Clara para uma viagem a Confiturembourg, o país das guloseimas. O primeiro ato termina com os jovens viajantes sobrevoando uma densa Floresta, dentro do sapato perdido do Vovô. A orquestra toca a Valsa dos flocos de neve, que dançam envolvendo todo o cenário.

 

No Segundo Ato, Clara e o Quebra-nozes chegam a Confiturembourg, o reino dos doces e confeitos. São acolhidos pela Fada Açucarada, que organiza um espetáculo coreográfico em sua homenagem. Os habitantes da cidade, originários de diversos países, apresentam aos visitantes deliciosas especiarias: o Cacau (Dança espanhola), o Café (Dança árabe, cujo tema, na verdade, pertence a um acalanto da Geórgia) e o Chá (Dança chinesa). Tchaikovsky demonstra todo o requinte de sua orquestração, além do gosto por inusitadas combinações instrumentais.

 

Outros dançarinos se sucedem. Os Cossacos se exercitam em vigoroso Trepak (Dança russa). Os Bambus, representando os instrumentos de sopro infantis, formam um terceto de flautas na Dança dos Mirlitons, com a participação do corne inglês e, na parte central, dos metais. Mamãe Gigogne e os Polichinelos apresentam uma divertida paródia da canção Cadet-Roussel.

 

Entusiasmada com o espetáculo, Clara não se contém – corre até o Quebra-nozes e o beija, transformando-o em Príncipe. Pétalas multicoloridas se reúnem na Valsa das flores, cujo belo tema é cantado pelas trompas. Os namorados dançam um Pas de Deux e o Príncipe, para mostrar sua nova forma e agilidade, sola uma brilhante Tarantela. Segue-se o agradecimento da anfitriã, que faz seu número na Dança da Fada Açucarada. Para ela, Tchaikovsky utilizou (pela primeira vez na Rússia) o som etéreo da celesta, em contraste com intervenções voluntariamente rústicas de um clarinete baixo. Felizes, todos os dançarinos se reúnem para uma Valsa final, até que a festa culmine em festiva Apoteose.

 

Os balés de Tchaikovsky foram criados em parceria com o coreógrafo e libretista Marius Petipa. No caso de O quebra-nozes, ele se inspirou livremente na versão francesa de Alexandre Dumas sobre um conto fantástico do escritor alemão E. T. A. Hoffmann. Tchaikovsky compôs seguindo exigências precisas de Petipa – cada cena do balé era minuciosamente descrita pelo coreógrafo, compasso por compasso. Surpreendentemente, essa rigidez não perturbou o compositor, e a música flui com naturalidade impressionante. Desde sua estreia até os dias atuais, O quebra-nozes suscitou muitas versões coreográficas alternativas que, em comum, preservam apenas a música de Tchaikovsky e a intriga principal. Entre os grandes balés do século XIX, O quebra-nozes se distingue por não possuir uma coreografia standard. Enquanto algumas montagens tentam recuperar as características do original de Petipa, outras apresentam propostas pós-modernas, com a inclusão de temas subjacentes e movimentos de dança contemporânea.

 

Paulo Sérgio Malheiros dos Santos
Pianista, Doutor em Letras, professor na UEMG, autor dos livros Músico, doce músico e O grão perfumado – Mário de Andrade e a arte do inacabado.

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