Romeu e Julieta: excertos das suítes 1 e 2

Sergei PROKOFIEV

Não há, provavelmente, no mundo, uma só pessoa que não tenha ouvido falar de Romeu e Julieta. Mas, ao contrário do que se acredita, Romeu e Julieta são personagens fictícios, Montéquios e Capuletos não são nomes de famílias rivais de Verona e Shakespeare não foi o primeiro a contar esta história. Até o século XVIII, os escritores tinham o hábito de recontar histórias conhecidas como bem lhes provinha. O interesse estava não no inventar temas novos, mas no recontar temas antigos de maneira original. O tema dos dois amantes impedidos de viver juntos, do frade que os casa em segredo e da poção do sono que faz com que a amada ressuscite nos braços do amado já encantava os contadores de histórias da Grécia antiga. Porém, foi na Itália que este tema teve mais repercussão: Giovanni Boccacio, Masuccio Salernitano, Luigi da Porto e Matteo Bandello foram apenas alguns dos inúmeros poetas italianos que exploraram o tema. As histórias do Decameron e do Filocolo, de Boccacio, inspiraram Masuccio Salernitano a escrever, no século XV, a novela Mariotto e Ganozza di Siena. Nela, temos a história do casamento secreto de Mariotto e Ganozza por um frade agostiniano, do banimento de Mariotto da cidade de Siena, por acusação de assassinato, e da poção do sono tomada por Ganozza para se livrar de um casamento arranjado pelo pai. No século seguinte, Luigi da Porto adaptaria a história de Mariotto e Ganozza em sua Giulietta e Romeo. As modificações que ele fez na novela de Masuccio Salernitano trariam consequências duradouras para a literatura universal. Em sua versão, Luigi da Porto ambienta a história em Verona, muda os nomes dos amantes para Giulietta e Romeo e cria os nomes das duas famílias rivais, os Montecchi e os Cappelletti.

 

Como Dante havia citado os Montecchi e os Cappelletti, séculos antes, na Divina Comédia, surgia, a partir de então, a crença de que a história dos dois amantes havia de fato acontecido. Mas, ao que tudo indica, Montecchi e Cappelletti não foram nomes de famílias rivais de Verona e sim, alcunhas de partidos políticos. A partir do século XII, duas facções políticas estiveram em conflito na Itália: os gibelinos, partidários do Imperador (Sacro Império Romano-Germânico); e os guelfos, partidários do Papa. Os Montecchi (cujo nome deriva do latim monticuli – pequeno monte) eram os gibelinos, que se reuniam no castelo de Montecchio Maggiore, nas redondezas de Vicenza, no início do século XIII. Cappelletti (cujo nome deriva de Cappellini – pequenos chapéus) era o nome que designava a facção guelfa de Cremona, expulsos da cidade em meados do século XIII. Mas quando esses fatos foram esclarecidos, já era tarde demais, e a lenda já havia sido criada. E, antes que ela chegasse aos ouvidos de Shakespeare, seria ainda contada por Matteo Bandello, Pierre Boaistuau, Arthur Brooke, William Painter e muitos outros.

 

O nome Capuleti, que hoje usamos, no lugar de Cappelletti, parece ter surgido de uma tradução literal de Capulet. Shakespeare, quando escreveu sua peça, décadas após a Giulietta e Romeo de Luigi da Porto, traduziu os nomes das famílias rivais para Montagues e Capulets. Assim, Romeo Montecchi se tornou Romeo Montague, e Giulietta Cappelletti, Juliet Capulet. E, à medida que a peça de Shakespeare ia sendo traduzida para vários idiomas, Montagues mantinha-se invariável, ou encontrava seu correspondente italiano Montecchi, e Capulets acabou transformando-se em Capuleti. Mas nada disso seria capaz de tirar o fascínio da história de Romeu e Julieta. Shakespeare soube encantar inúmeras gerações, ao longo dos séculos, com a história do amor proibido dos dois jovens de Verona, da rivalidade das duas famílias mais poderosas da cidade, da morte trágica dos amantes e do fim das hostilidades que o triste desfecho proporcionou.

 

Quando, em 1934, Prokofiev recebeu uma encomenda do Balé Kirov, ele logo sugeriu uma adaptação de Romeu e Julieta, de Shakespeare. A direção do Kirov achou um sacrilégio adaptar Shakespeare para o balé e desistiu da encomenda. Prokofiev assinou, então, um contrato com o Balé Bolshoi, mas, no ano seguinte, seria a direção do Bolshoi que desistiria da montagem. Quando ouviram a música pela primeira vez, acharam que seria impossível dançá-la. Nos anos 1936-37, desejando tornar o balé conhecido, mas impossibilitado de ter a obra coreografada, o compositor arranjou a música em duas suítes orquestrais (op.64 bis e op.64 ter) e uma suíte para piano (Dez peças para piano, op.75). O balé foi estreado em sua versão original, na cidade de Brno, na atual República Tcheca, no dia 30 de dezembro de 1938. A estreia passou despercebida e apenas um ano depois, no dia 11 de janeiro de 1940, o Balé Kirov realizaria, em Moscou, a primeira execução soviética. Apesar dos bailarinos do Kirov não terem compreendido plenamente a música, e a orquestra ter tentado cancelar a apresentação para evitar um desastre, o balé foi muito bem recebido pelo público e se tornou um sucesso desde então. Em 1946, procurando consertar algumas falhas dramáticas das duas primeiras suítes orquestrais, Prokofiev criou uma terceira suíte (op. 101). Nenhuma das três conseguiu resumir a grandiosidade do balé original. A versão que ouviremos hoje é de uma nova suíte orquestral, montada pelo maestro Fabio Mechetti a partir das suítes nos 1 e 2, mais fiel à ordem cronológica da peça de Shakespeare e mais dramática quanto à ordenação dos movimentos.

 

Guilherme Nascimento
Doutor em Composição, professor de Música da UEMG e da Fundação de Educação Artística, autor do livro Música menor.

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