|    10 mar 2015

Beethoven, do mito ao homem

Nosso colaborador Moacyr Laterza Filho escreve sobre o surdo ouvia o infinito, a quem dedicamos os sábados Fora de Série deste ano

por MOACYR LATERZA FILHO *

 

Se pudéssemos passar da história da música à história dos homens – não à história política, nem mesmo à história das mentalidades, mas a uma “história dos exemplos humanos”, desses que a literatura de Dickens soube pintar com raro otimismo; se pudéssemos, pois, realizar esse movimento, diríamos, em primeiro lugar, que Ludwig van Beethoven foi um grande homem.

 

Sob uma perspectiva humana, ele foi exemplo de autossuperação e de entrega determinada ao cumprimento da missão da qual acreditava estar investido: a de ser, pela música, testemunha da humanidade. Por isso mesmo, ambas as coisas, em Beethoven, se confundem.

 

De sua infância infeliz e trágica, marcada pela brutalidade de um pai alcoólatra que dele quis fazer – sem sucesso, como pianista – um segundo Mozart; marcada, também, pelas responsabilidades que teve de assumir ainda muito jovem, em razão da decadência do pai e da perda da mãe, a quem amava profundamente e que via sofrer pelos excessos do marido – de tudo isso Beethoven fez matéria para construir-se a si próprio e à sua música.

 

Os abusos da infância não o fizeram voltar-se contra o pai ou tomar ojeriza pela música, mas, ao contrário, fortaleceram em Beethoven o sentido da sua individualidade e, com isso, a consciência de que sua obra não deveria servir aos desejos e caprichos da aristocracia, nem mesmo às expectativas de um público habituado a apreciar somente o que tinha costume de ouvir. Sua música deveria ser testemunha dele próprio, como homem, como ser social e político, como indivíduo – com suas contradições e angústias. Assim, por testemunhar o homem, ela testemunharia, deste, a humanidade.

 

A convivência com Haydn não foi nem longa nem proveitosa. Beethoven aprende muito mais no contato com a obra de Haydn do que de sua pedagogia. Conservará, entretanto, por toda a vida, profunda admiração pelo mestre, embora as relações entre ambos sejam de mera cordialidade e nunca de confiança. Mais longo e mais proveitoso foi o contato com Salieri, com quem estudou de 1794 a 1800. A partir de então, começa a se firmar como compositor e instrumentista. Sua fama de grande improvisador ao piano já é notória. Sua ascensão é progressiva e ininterrupta. De uma obscura cidade do principado de Colônia, esse jovem de origem humilde soube se impor ao maior centro musical da Europa e se tornar lenda ainda em vida.

 

A maior tragédia de Beethoven foi, sem dúvida, a sua progressiva surdez. Os primeiros sinais aparecem ainda em 1798, ano de composição da Sonata para piano, op. 13 (a “Patética”). Ainda assim, mesmo com o agravamento do mal, que o levará à total perda de audição, Beethoven não sucumbe à fatalidade, nem se furta a manter-se firme em seu propósito de, pela música, testemunhar o homem. Sua surdez não explica sua obra, é certo, mas talvez a densidade de seu pensamento musical nunca chegasse a grau tão exponencial se, como nas palavras de Roland de Candé, “o silêncio exterior não lhe tivesse imposto a concentração de sua vontade numa música ideal”. Escreverá, por isso, Victor Hugo: “Esse surdo ouvia o infinito”.

 

Para Beethoven, compor nunca é uma tarefa ligeira ou fácil: seus muitos cadernos de notas o atestam. Exemplo claro disso é Fidélio, sua única ópera. Muitas versões e um trabalho árduo de revisões e correções (inclusive do libreto) marcam a trajetória de sua elaboração, desde sua estreia em 1806 até sua publicação em 1826, sem mencionar o antes. Pode-se, erroneamente, atribuir essa laboriosidade à dificuldade de Beethoven em lidar com a linguagem vocal. Trata-se de uma inverdade: suas canções, a Nona Sinfonia, a Missa Solemnis o comprovam. Trata-se, sobretudo, do grande senso de responsabilidade que norteia o trabalho criativo do compositor. Cada obra sua nasce com a missão de ser mais que mero divertimento para outrem, mais que meras ideias musicais lançadas sobre uma estrutura formal já estabelecida. Cada obra de Beethoven nasce com a responsabilidade de ser!… E, sendo, de mostrar, ao homem, o Homem. Talvez seja esse aspecto o que garanta a sempre tão veemente atualidade de sua música. A trágica consciência de um propósito voluntariamente abraçado terá ascendência direta e profunda sobre todas as gerações de compositores posteriores a Beethoven, em maior ou menor grau. Cite-se somente um exemplo: Johannes Brahms só concluiu a sua primeira sinfonia aos quarenta e três anos de idade, tendo levado vinte e um anos para compô-la! Igualmente, essa consciência e esse propósito se refletem na própria obra de Beethoven, se comparada à de seus contemporâneos: Mozart compôs vinte e sete concertos para piano; Beethoven, apenas cinco. Haydn compôs mais de uma centena de sinfonias; Mozart, quarenta e uma; Beethoven, apenas nove.

 

AS FASES DE BEETHOVEN

Desde muito cedo Beethoven assume essa postura de grande responsabilidade diante do ofício de artista criador. Por isso a clássica tripartição das fases de Beethoven, proposta por F. J. Fétis e W. von Lenz, se mostra frágil. Nessa tripartição, a primeira fase, que iria de 1800 a 1802, mostra um Beethoven que ainda se atém à linguagem clássica, sob a ascendência de Haydn, embora já demonstre aspectos muito pessoais. Anterior a essa fase, porém, estão, por exemplo, três sonatas para piano, compostas entre 1782 e 1783 – portanto, não incluídas na série canônica das trinta e duas sonatas para piano –, que já ensaiam, dentre outras obras, a própria Sonata Patética, op. 13, a qual, por sua vez, em muitos aspectos distancia-se da linguagem genuinamente clássica.

 

A segunda fase iria de 1803 a 1815. Nela, notam-se certas investidas formais, alterando a forma sonata, a substituição do minueto pelo scherzo e uma série de experiências na linguagem pianística e na linguagem orquestral. Na última fase, que vai de 1815 a 1826, Beethoven, já completamente surdo, demonstra certa abstração e maior ruptura em relação às formas clássicas, criando obras às vezes de proporções monumentais, como a Grande Fuga, as sonatas op. 106 e 111, a Nona Sinfonia e a Missa Solemnis.

 

Sobre esta última obra cabe um breve comentário. Embora Beethoven faça frequentemente uso do contraponto e da fuga em obras de sua última fase (notem-se, por exemplo, o ciclo dos últimos quartetos de cordas e a sonata op. 110), há críticos que veem na Missa Solemnis uma releitura, consciente ou não, muito peculiar – muito beethoveniana – da grande polifonia franco-flamenga de Josquin des Prez e Ockeghem. Outros críticos, porém, associam essa obra à tradição polifônica pela exploração que o compositor aí faz do sentido de espacialidade. Associações à parte, é certo que Beethoven mais uma vez logra transcender a linguagem clássica, dessa vez propondo um olhar contemporâneo sobre o passado musical de que é herdeiro, reelaborando-o.

 

A tripartição das fases de Beethoven é, portanto, uma organização esquemática e cômoda, que agrupa a sua obra de forma didática. Mas, para um observador atento, há nela muitas contradições.

 

É de se mencionar ainda que, ao contrário de Mozart, a quem tanto admirava, e cujo gênio dramático-vocal se mostrava quase que em cada uma de suas inflexões, Beethoven encontra seu caminho mais genuíno de expressão na música instrumental.

 

Nesse campo, ele foi determinante para os gêneros mais significativos: sem falar das sonatas para piano, citem-se categoricamente seus quartetos de cordas, suas sonatas para violino e piano, suas sonatas para violoncelo e piano, seus trios com piano, para não mencionar as sinfonias. Destas, a última, pelo uso das vozes humanas, o que, dentre outros aspectos, transcende o conceito clássico.

 

Beethoven foi o grande surdo que a civilização ocidental fez entrar em sua mitologia. Paradoxalmente o último dos clássicos e o primeiro dos românticos, foi testemunha da fronteira entre duas eras. Seu papel histórico é capital: transcendendo o Classicismo, foi o norte e o farol do Romantismo, dando exemplo de todas as superações e ampliando de tal maneira as formas tradicionais, que elas pareceriam eternas às gerações que o sucederam.

 

Beethoven foi o grande fantasma do Romantismo… E somente com Debussy e Stravinsky a música do Ocidente conseguiu, definitivamente, com grande deferência, afastar-se dele. Beethoven é o primeiro músico cuja atividade criadora foi assumida e não delegada e, cônscio disso, subverteu as relações entre a música e a sociedade, nas palavras de Roland de Candé, “desviando sua arte de seu destino aristocrático para se dirigir à humanidade inteira”.

 

* Pianista e cravista, Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa, professor da Universidade do Estado de Minas Gerais e da Fundação de Educação Artística.

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