|    20 ago 2020

Maestro indica: “Tristão e Isolda” de Wagner

O impacto que nos traz a música de Wagner

O impacto que nos traz a música de Wagner

por Fabio Mechetti

Duas semanas atrás, ao comentar a obra de Shostakovich, sugeri que não há necessidade de se estar num ambiente de Liberdade para se expressar livremente. Um artista criativo, especialmente se imbuído de genialidade, consegue sempre produzir algo relevante, emotivo, significativo, mesmo quando submerso em adversidade, seja ela de cunho político, social ou econômico.

Hoje, introduzo uma outra questão estética de difícil compreensão, mas que se evidencia na história das artes em várias oportunidades: para se produzir grande arte, é necessário que o/a artista siga em sua vida privada, ou mesmo pública, um compasso moral? É possível que uma pessoa de caráter absolutamente repreensível possa criar ou manifestar beleza? Pode parecer um paradoxo, mas na verdade, os exemplos dessa realidade são frequentes.

Talvez um dos casos mais extraordinários desse fenômeno seja Richard Wagner. De um lado, temos o compositor que reinventou a ópera e que a posicionou, especialmente na segunda metade do século, como a grande forma de arte do século XIX. Seu gênio não se manifesta apenas na indiscutível competência e beleza de sua música, mas no fato de que sua obra inclui também a escrita do libreto, o desenho dos cenários e figurinos, instruções de direção de cena, instruções específicas para os intérpretes, sejam eles regentes ou cantores. Enfim, Wagner veio a consolidar a ideia do Gesamtkunstwerke, ou a “obra de arte total”, em que todos os aspectos da criação de uma ópera estão sob controle do criador: o compositor. Ele até veio a desenhar seu próprio teatro (Bayreuth), onde suas óperas seriam apresentadas. Ou seja, o gênio de Wagner não se restringe apenas à sua habilidade musical, mas a de escritor, diretor de teatro, cenógrafo, figurinista e arquiteto! Não à toa, ele suscitou tantos seguidores e inimigos durante sua época, incluindo outros gênios, como Nietzsche, por exemplo.

De outro lado, temos um homem inescrupuloso, infiel, que se aproveitava sem remorsos de seus “amigos” (incluindo o Rei Luís II da Bavária, e em menor grau do nosso próprio imperador Pedro II), que não media esforços para derrubar e boicotar seus adversários e que expressou de forma contundente, tanto em seus ensaios quanto em personagens de suas óperas, um forte antissemitismo. O mesmo homem que dizia: “Creio em Deus, Mozart e Beethoven, e em seus discípulos e apóstolos – no Espírito Santo e na verdade de uma Arte única e indivisível. Creio que esta Arte é gerada por Deus e habita os corações de todas as pessoas iluminadas”, foi capaz de também dizer: “Considero a raça judia a inimiga inata da humanidade pura e tudo o que é nobre com respeito a ela.”

Por décadas, a música de Wagner não foi executada em Israel. Seu posicionamento antissemita, associado ao fato de que sua música era idolatrada por Adolf Hitler (e aqui, logicamente, Wagner não tem culpa disso), tornaram-se compreensivamente ofensivos e indigestos àqueles que se tornaram vítimas dessa realidade histórica. Entretanto, à medida que crescia o distanciamento histórico das gerações diretamente afetadas pelo holocausto, e também a aceitação de que, apesar de tudo, não se pode negar a qualidade e força emocional de sua música, gradualmente suas obras passaram a ser introduzidas nas temporadas de concertos das orquestras israelitas.

Enfim, é possível separar o homem de sua arte? É possível sermos profundamente movidos ao escutar uma música genial, excepcionalmente humana e, ao mesmo tempo, negligenciar as falhas morais daquele que a produziu? Essas respostas estão na consciência e no coração de cada um.

Como é possível escutarmos o Prelúdio e a cena final (Morte por Amor) de Tristão e Isolda, frequentemente executados em concertos sinfônicos, sem nos tocarmos com a carga emocional que tal obra exerce em todos nós?

Vamos tentar?

A imagem deste post é de Franz Hanfstaengl (1871).

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