Ludwig van BEETHOVEN
Embora a vida e a obra de Beethoven sejam, em certo sentido, um ato de revolução, sua preocupação nunca é a de romper integralmente com a tradição musical que lhe é legada, direta ou indiretamente: sua meta prioritária não é transformar a sua herança. No entanto, sob a forte pressão de suas ideias e de sua vigorosa originalidade criadora, esse mesmo legado se rompe e se transforma, abrindo caminhos possíveis para as gerações que o sucedem. Talvez por isso mesmo Beethoven raramente se afaste da forma sonata, inclusive em suas grandes obras (sonatas para piano, concertos, quartetos de cordas, sinfonias, dentre outros gêneros), mas, pela força imperativa da sua inventividade individual, ela não raro ultrapassa os limites impostos pela racionalidade iluminista da linguagem clássica. Seu sistema de trabalho atesta esse processo. Seus cadernos de notas e seus esboços revelam suas inúmeras hesitações, frutos da angústia consciente de sua responsabilidade: como artista, Beethoven se reconhece investido de uma missão, e tem a tarefa de exprimir uma ideologia. Por isso, mais do que função, para ele a arte é uma espécie de compromisso de vida, de voto, ou de sacerdócio. Escrevendo lenta e dificilmente, sua preocupação não é, a priori, negar o legado musical do Ocidente, mas exprimir-se a si próprio como artista investido dessa missão que, em última análise, é a de ser embaixador da própria humanidade. É nessa dinâmica que, então, Beethoven consegue abrir novas perspectivas para as gerações de compositores que o sucedem.
É provável que, em virtude desse grande comprometimento consigo mesmo e com sua missão artística, Beethoven não se tenha dedicado efetivamente ao gênero lírico. Sua única ópera (Fidélio), a despeito de sua grande e inegável qualidade, talvez tenha mais importância por ter sido composta por ele do que por representar efetivamente um expoente do gênero musical dramático. A submissão das ideias musicais a um libretto que lhe pudesse tolher ou direcionar, ainda que minimamente, a abstração ou a expressão individual seria insustentável para um gênio criador tão vigoroso quanto o seu: ao contrário de outros compositores também importantes, a ópera não é o gênero em que ele se exprime melhor. Estreada em 1805, Fidélio passou, após suas primeiras récitas, por várias revisões e alterações até que chegasse à versão definitiva, tal qual a conhecemos. Isso revela, em outro ângulo, essa laboriosidade angustiosa que sempre perpassa o processo criador de Beethoven e denota a sua preocupação em construir, no todo de sua produção artística, uma obra que fosse expressão daquela missão de que se acreditava investido.
Sintoma desse duro processo da gênese de Fidélio é o fato de Beethoven ter composto não apenas uma, mas quatro aberturas para a ópera: composta em primeiro lugar, mas não tendo sido executada na estreia da ópera, e publicada apenas em 1832, Leonora nº 1, que data de 1805; composta no mesmo ano, Leonora nº 2, obra que foge grandemente ao modelo tradicional das aberturas de ópera até então utilizado e que, por isso mesmo, não foi bem recebida pelo público; Fidélio, ou Leonora nº 4, composta para as récitas de 1814 e que hoje é mantida como a abertura “oficial” da ópera; Leonora nº 3, que data de 1806. Das diversas tentativas de reintegrar à ópera essas quatro obras sinfônicas, não deixa de ser curiosa a de Gustav Mahler que, quando diretor artístico da Ópera de Viena, as utilizou a todas, em uma única récita de Fidélio. No entanto, também introduzida por Mahler, a prática mais comum, pelo menos até a metade do século XX, era inserir Leonora nº 3 entre as duas cenas do segundo ato.
Recebida com ceticismo pelo público de então, Leonora nº 3, apesar de menos afastada formalmente do modelo tradicional das aberturas de ópera, especialmente se comparada com Leonora nº 2, é uma obra de tamanho impacto dramático, e de tamanha coesão e coerência internas, que pode ser considerada como obra sinfônica totalmente independente, sem necessária vinculação com a ópera. Suas modulações abruptas, que causaram profundo estranhamento ao público que lhe assistiu à primeira execução, e seus tratamentos temáticos colocam-na sem reserva entre as mais significativas das aberturas de Beethoven, incluindo não apenas as suas irmãs homônimas, mas também Coriolano e Egmont. Ademais, pela própria construção da obra, alguns estudiosos a posicionam em um estágio embrionário de um gênero que surgiria cerca de cinquenta anos mais tarde: o poema sinfônico. Essa sua independência, devida à forte coesão que a sustenta, mostra com clareza esse processo talvez inconsciente de Beethoven que, sem negar o passado musical de que é devedor, modifica-o em virtude de sua própria postura estética: a de exprimir-se genuinamente e com liberdade em sua individualidade criadora, para, com isso, testemunhar o espírito de seu tempo e da própria humanidade. Com isso, Beethoven abre caminhos inclusive formais para aqueles que o sucedem, e essa postura será definitivamente abraçada numa segunda geração, de que participam Mendelssohn, Schumann, Chopin e Liszt.
Moacyr Laterza Filho
Pianista e cravista, Mestre em Teoria da Literatura, Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa, professor da Fundação de Educação Artística e da Escola de Música da UEMG.