Heitor VILLA-LOBOS
De volta ao Brasil, em 1930, depois dos anos parisienses, Heitor Villa-Lobos exerceu uma atividade abrangente no cenário musical do país, desdobrando-se em múltiplas tarefas — estímulo ao ensino musical, criação de grupos de canto coral, organização e regência de concertos. E continuava compondo muito. As nove Bachianas Brasileiras foram escritas entre 1930 e 1945, época de vicissitudes entre as duas grandes guerras, de ascensão dos Estados totalitários e, nas artes, de grandes desvios nos rumos das vanguardas do início do século. Os anos 1930 caracterizam-se por uma tendência à institucionalização, contrariando a irreverência e as ousadias das décadas anteriores. Neste cenário, como fruto de um processo crítico iniciado no Romantismo, Bach é entronizado como o grande gênio musical do Ocidente. O neoclassicismo das Bachianas referenciava, portanto, a melhor tradição europeia e ainda aproximava os nomes de Bach e de Villa-Lobos (o grande músico das Américas). Conforme dados fornecidos pelo próprio Villa-Lobos, quem lhe apresentou a obra de Bach foi tia Zizinha, irmã de seu pai e pianista amadora. Por outro lado, o Rio de Janeiro do começo do século XX era a capital dos chorões, músicos populares que fascinaram o compositor e aos quais ele se uniu em muitas aventuras musicais. Anos mais tarde, Villa-Lobos tentará, na série das famosas Bachianas Brasileiras, uma síntese dessa dupla inspiração, procurando afinidades entre os procedimentos composicionais do mestre germânico e a prática musical de vários grupos populares brasileiros. Entre outras semelhanças, o compositor ressaltava a habilidade dos chorões ao trabalhar contrapontisticamente células melódicas, como nas progressões barrocas; os volteios das improvisações instrumentais dos conjuntos de choro, lembrando o desenho ornamentado das melodias barrocas; o caráter estático de certos movimentos lentos; o cultivo do estilo imitativo, com um fluxo melódico constante, em detrimento do desenvolvimento à maneira clássica. Ainda segundo Villa-Lobos, a arte dos repentistas nordestinos, seus desafios e emboladas, poderia associar-se à antiga prática luterana do quodlibet, velho hábito germânico de entoar canções populares em diferentes combinações e que constituía um passatempo na família Bach.
Os movimentos das nove Bachianas trazem, geralmente, dois títulos — um que remete às formas barrocas e outro, bem nacional, seresteiro, nordestino ou sertanejo. Cada uma das Bachianas destina-se a um instrumento ou a um conjunto instrumental diferente. A de nº3 é para piano e orquestra.
O Prelúdio (Ponteio) inicia-se com uma longa frase do piano, com caráter de recitativo, em adagio. A ela se entrelaça um desenho no registro grave da orquestra. Após um segundo episódio em movimento mais rápido, a orquestra reapresenta a melodia principal, sobre os graves do piano. Um terceiro episódio explora o contraste entre o solista e a orquestra; há uma breve reminiscência do tema inicial e, após pequeno solo do piano, apresenta-se a coda final.
Na Fantasia (ou Devaneio), um tremolo orquestral em crescendo antecede a melodia vigorosa e marcial do piano. Um segundo episódio, alegre e vivo, permite ao solista exibir-se em virtuosismos, antes que, em movimento mais lento, a orquestra apresente um sereno coral. Após algumas re-exposições temáticas e novos episódios, a Fantasia termina de forma grandiosa.
O tema principal da Ária (Modinha) é apresentado pelo piano, após dois pequenos motivos de caráter bem sentimental. O primeiro aparece em contraponto de flauta, corne-inglês, fagote, contrafagote e trompa. O segundo, desenhado pelo clarinete, é acompanhado pelos violoncelos e contrabaixos. Um outro tema, em Allegro contrastante, desenvolve seu ritmo de marcha em acordes dissonantes.
O título brasileiro da Toccata, Picapau, justifica-se pela insistente repetição de notas, lembrando o pássaro que, batendo a madeira com seu bico, produz um martelamento seco e monótono. O ambiente musical é o das danças populares do norte e do nordeste brasileiros.
Escrita em 1938, a Bachianas, Nº 3 estreou a 19 de fevereiro de 1947, em Nova York, com a orquestra CBS e o pianista José Vieira Brandão, sob a regência de Villa-Lobos.
Paulo Sérgio Malheiros dos Santos