Sinfonia nº 7 em Lá maior, op. 92

Ludwig van BEETHOVEN

(1811/1812)

Instrumentação: 2 flautas, 2 oboés, 2 clarinetes, 2 fagotes, 2 trompas, 2 trompetes, tímpanos, cordas.

 

É curioso notar como certas obras, quando despidas de seus contextos circunstanciais, por assim dizer, revelam aspectos insuspeitos para a observação crítica e analítica. Essa observação crítica, que somente certo distanciamento cronológico pode garantir, acaba por situar essas mesmas obras em um contexto maior, o que não raro lhes confere sentido diverso daquele que produziram nos tempos primeiros de sua produção ou de sua exposição ao público.

 

Assim poderia ser observada a Sinfonia op. 92 de Beethoven. Estreada em Viena, em 8 de dezembro de 1813, num concerto dado em benefício de soldados feridos na Batalha das Nações (ocorrida seis semanas antes, contra as tropas de Napoleão Bonaparte), ela aí fez par com um dos raros exemplos de música programática em Beethoven: a A Vitória de Wellington, ou a Batalha de Vittoria, op. 91. Após essa estreia, cujo sucesso teve repercussões muito positivas e que conferiram ainda mais popularidade ao então já célebre compositor, ambas as obras foram consideradas, durante muito tempo, somente em conjunto: uma parecia representar a própria batalha (o op. 91) e a outra, a alegria e a celebração da vitória (o op. 92).

 

Despojada desse fato circunstancial, porém, essa obra apresenta elementos fundamentais que norteariam a linguagem musical das gerações que sucederam Beethoven e que nele viram fonte substancial para novas posturas estéticas: pode-se dizer, assim, que na Sétima Sinfonia há marcadamente o início de um Beethoven anunciador da música do futuro. Nela o som adquire importância significante, para além de mero material de construção melódica. Timbre, densidade e intensidade assumem papéis quase autônomos, como elementos expressivos que falassem por si só. Basta um ligeiro golpe de vista sobre a primeira parte do segundo movimento para se notar que, a despeito da sobreposição de dois elementos melódicos, o que é aí trabalhado à exaustão não é exatamente o desenvolvimento temático, mas grandes diferenças de densidade, tessitura e timbre, encadeados com desenvoltura inovadora.

 

O tratamento da exposição temática, da mesma forma, toma, na Sinfonia op. 92, uma nova feição. Se nas sinfonias de Haydn e Mozart, e nas primeiras sinfonias de Beethoven, os temas são expostos sem rodeios e com uma “asserção” inconteste, em motivos mais ou menos delineados e de clareza explícita, na Sétima Sinfonia há certa ambiguidade expositiva que garante, ao compositor, potencialidades múltiplas para o trabalho de desenvolvimento: há como que uma nova proposta conceitual para o elemento temático, que é mais germe ou embrião fomentador da liberdade criativa que proposta lógica a ser demonstrada. Se isso já pode ser observado na Sexta Sinfonia, talvez seja na Sétima que isso transpareça como proposta amadurecida.

 

A própria ideia de melodia, que no Classicismo sinfônico era quase sempre indissociável da ideia de tema e consequente desenvolvimento ou variação, aparece aqui modificada pelo gênio beethoveniano. É certo que, em Beethoven, quase nunca se pode observar a franqueza melódica tão acessível, por exemplo, de Mozart ou de Schubert. A melodia, em Beethoven, sempre demonstra trabalho árduo, que seus cadernos de notas atestam: já se encontram esboços melódicos da Sétima Sinfonia em apontamentos que datam de cerca de seis anos antes de sua composição. No entanto, o Beethoven da Sinfonia op. 92 parece subverter a noção clássica de melodia para dela poder explorar outros caminhos, em que a rítmica assume papel fundamental. Se Friedrich Wieck (pai de Clara Wieck, mais tarde esposa de Robert Schumann), ao assistir ao primeiro ensaio dessa obra, considerou-a “pobre em melodias”, é certamente porque não conseguiu reconhecer, nela, o modelo clássico de melodia que Beethoven, aí, subverte.

 

Observada no contexto maior da obra e vida de Beethoven, afastada do momento circunstancial de sua estreia, a Sinfonia nº 7 ainda assim se coloca numa posição sui generis. Beethoven concluiu a composição dessa sinfonia em 1812. Na década anterior foram produzidas obras do porte das duas sonatas para piano op. 27, da Apassionata, da Sonata a Kreutzer, do terceiro e quarto concertos para piano e da quinta e sexta sinfonias. Um lapso de quatro anos separa a Sexta Sinfonia (“Pastoral”) da Sinfonia op. 92. Se na década de 1800 a 1810 os insucessos amorosos e o avanço inexorável da surdez ajudam a fazer explodir o gênio criativo em Beethoven, a segunda década do século XIX vê a consolidação definitiva de sua linguagem e de suas posturas estéticas e ideológicas.

 

O grau de abstração a que Beethoven submete os elementos formais da linguagem musical do Classicismo posiciona a Sétima Sinfonia num lugar sem precedentes no todo de sua obra e no campo da música sinfônica em geral. A angústia dialética que o acomete como compositor, fundamentada, por um lado, na ideologia romântica que lhe norteia o trabalho criativo e, por outro, na sua dificuldade em abandonar os modelos clássicos parece, aí, descortinar-lhe uma possibilidade expressiva até então pouco explorada. Assim, se Romain Rolland designou a Sinfonia op. 92 uma “orgia de ritmos”, é porque não teve totalmente a compreensão do artista criador, que busca seus próprios caminhos. Mais lúcida é a metáfora de Richard Wagner, que a ela se referiu como “a apoteose da dança”.

 

Moacyr Laterza Filho
Pianista e cravista, professor na Escola de Música da UEMG e na Fundação de Educação Artística.

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