Carmina Burana

Carl Orff

É tendência observável, nas artes em geral, e na música, em particular, que em momentos de transformações profundas haja sempre movimentos de reação. Algumas vezes conservacionistas, outras vezes buscando caminhos alternativos, esses movimentos são como que uma tentativa de chamada à ordem, quando excessos experimentais se tornam por demais ameaçadores, por assim dizer, de uma tradição ou corrente estética até então instituída. No entanto, é também observável que esses movimentos de reação não raro absorvem, ao menos em parte, as novas conquistas das correntes inovadoras a que se opõem, e, delas fazendo uso, acabam por se tornar também representativos de seu próprio tempo.

 

A Música Ocidental passou, no século XX, pelo que talvez tenha sido a maior revolução de sua História. Nesse momento em que o Sistema Tonal já se mostra insuficiente para as necessidades expressivas, diversas correntes emergem como caminhos possíveis e prováveis para a elaboração de novos sistemas de linguagem musical. Assim, caminhos por vezes díspares se cruzam nesse grande emaranhado que são as tendências estéticas da Música do Ocidente no século passado: de um lado, a ideologia evolucionista de Schoenberg e da Segunda Escola de Viena e, de outro, as propostas revolucionárias de Debussy e Stravisnky; num extremo, o neoclassicismo de Prokofiev e, em outro, os experimentalismos arrojados de John Cage e Charles Ives; num polo, o construto intelectual de Paul Hindemith, e em outro, os destilados etnográficos de Bartók, Villa-Lobos e Manuel de Falla.

 

Nesse imenso colorido de possibilidades, foi recorrente uma procura, em outros sistemas musicais, por materiais que oferecessem meios alternativos de expressão musical. Dessa forma, Ravel, em alguns momentos, se volta para o Jazz; Villa-Lobos, Ginastera, Bartók, Falla e Kodály voltam-se para a música tradicional de suas terras de origem; compositores como Weil e Piazzolla, cada um a seu modo, se voltam para a música dita popular.

 

Talvez seja nessa esteira, menos que numa perspectiva neoclássica ou reacionária, que se possa observar e compreender a obra do alemão Carl Orff (1895-1982). Nascido em Munique, oriundo de uma família da alta burguesia bávara, sua biografia aponta para aspectos polêmicos e nebulosos, sendo, por isso, em certo sentido contraditórios: foi ao mesmo tempo suspeito de ter contribuído para o Regime Nazista e de ter participado de movimentos de resistência contra ele. Posicionamentos políticos à parte (que, de fato, nunca foram comprovados), Orff deixou em seu legado um importante trabalho de pedagogo, tendo fundado em 1925 um centro de educação musical voltado, sobretudo, para crianças e leigos. Trabalhando aí até o ano de seu falecimento, Orff é criador de um sistema de educação musical baseado no canto e na percussão que, hoje, é reconhecido e divulgado universalmente.

Em seu trabalho de compositor, no entanto, Orff se volta justamente para essa procura por materiais expressivos constituintes de outros sistemas musicais. Em seu caso específico, porém, ele não realiza nenhum trabalho de pesquisa etnomusicológica, por assim dizer, nem tampouco procura no Jazz ou em sistemas musicais do Oriente, da África ou das Américas a fonte para esses materiais. Seu trabalho é muito mais arqueológico que etnográfico. Voltando-se para um passado e uma realidade musicais impossíveis de serem recuperados ou reconstituídos completamente, Orff realiza um trabalho de recriação de sistemas em parte apenas intuídos. É, portanto, para a música da Antiguidade Clássica, ou para a música popular da Baixa Idade Média que Orff dirige sua atenção, buscando reconstituir algo de seu sistema, a fim de elaborar uma matéria-prima própria (e original) para seu trabalho específico de criação. Não se trata, dessa forma, de uma recuperação literal desse passado musical, mas da reconstituição, a partir de uma visão pessoal, daquilo que poderia ser um pouco do material expressivo. Orff associa a isso muito das conquistas específicas da música do século XX, criando, assim, uma linguagem que, embora acessível, é inusitada e plena de originalidade. Disso resulta uma orquestração nem sempre ortodoxa, em que despontam o uso de instrumentos de teclado e de uma percussão farta e exuberante. Resulta também daí uma rítmica particular que, como na música dita popular, apela para própria fisiologia do ouvinte. Decorre também disso uma elaboração melódica que, plena de modalismos e isenta de qualquer elaboração intelectual muito intrincada, nunca deixa de ser acessível e ao mesmo tempo atraente.

 

Os Carmina burana (carmina sendo o plural latino de “carmen” – poema, cantiga, verso) são uma coleção de poemas que constituem um manuscrito do século XIII, encontrado em Benediktbeurn, na Bavária. São poemas essencialmente seculares, cujo mérito literário varia em diversos graus, e cuja temática passa por diversos assuntos: sátiras, paródias literárias ou litúrgicas, canções de amor, canções de taberna e histórias de origem clássica. A autoria desses poemas é em sua maior parte desconhecida, mas é certo que não se trata apenas de um único autor. Além disso, é bem provável que os vários autores desse manuscrito sejam oriundos de nacionalidades diferentes, dado que os poemas encontram-se escritos não apenas em latim medieval, mas também em diversos vernáculos, incluindo o alemão, o inglês, o francês e o provençal.

 

A obra de Carl Orff baseada nesse manuscrito seleciona, de um total aproximado de trezentos e cinquenta poemas, apenas mais ou menos vinte, cujas línguas se restringem basicamente ao latim e ao alemão medievais. Composta em 1937, Carmina burana é a primeira parte de uma trilogia musical que o compositor intitulou Trionfi, constituída, além dessa obra, pelos Catulli Carmina e pelo Trionfo di Afrodite. Adotando a forma de uma cantata que permite, inclusive, o trabalho cênico, a obra é constituída de coros e árias para solistas, além de trechos puramente instrumentais. Digno de nota, porém, é o trabalho que Orff realiza com esses procedimentos musicais, fazendo diversas combinações entre solistas e coros, além de se utilizar de diversas formações corais: grande coro, pequenos coros, coro masculino e coro infantil. De fato, Orff, como que explicando um pouco esses procedimentos, adiciona, ao título principal, um subtítulo, também em latim: Cantiones profanae cantoribus et choris cantandae concomitantibus instrumentis atque imaginibur magicis (Cantos profanos para solo e coro, cantando acompanhados de instrumentos e com quadros mágicos).

Os Carmina burana de Orff dividem-se em sete grandes seções: “Fortuna, Imperatriz do Mundo”, “Na Primavera”, “Nos Prados”, “Na Taberna”, “Corte de amor”, “Banziflor e Helena” e de novo “Fortuna, Imperatriz do Mundo”. Cada uma dessas seções traz, marcada em seu título, a sua temática e, portanto, o teor dos poemas escolhidos e musicados. Hoje já quase vulgarizado pela mídia, o apoteótico coro de abertura e finalização da obra não a define por inteiro. Sua variedade de caráteres e andamentos, suas combinações inusitadas, sua rítmica ora pulsante, ora elástica, sua diversidade melódica sempre atraente, sua orquestração rica e finamente cultivada, além de sua originalidade, fazem dessa obra um momento raro de encantamento, definitivamente representativo do século XX.

 

 

Moacyr Laterza Filho
Pianista e cravista, Mestre em Teoria da Literatura, Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa, professor da Fundação de Educação Artística e da Escola de Música da UEMG.

anterior próximo