Cleópatra

Hector Berlioz

(1829)

Instrumentação: Piccolo, 2 flautas, 2 oboés, 2 clarinetes, 2 fagotes, 4 trompas, 2 trompetes, 3 trombones, tímpanos, cordas.

 

A figura quase caricatural de Berlioz poderia parecer pitoresca, hoje, se não fosse a sua verdadeira sinceridade. A cabeleira farta e cuidadosamente desalinhada, o nariz e o olhar agudos, a maneira emotiva e enfática de expressar as suas paixões, um certo senso de humor, raro em uma figura tão cônscia de si, lhe dão um aspecto de ator shakespeariano, entre o louco e o trágico. Mesmo sua atividade frenética tem um certo traço de impulsividade e exagero: investe sobre ministérios, monta espetáculos, reúne orquestras monumentais, organiza festivais de música. Como Schumann, Berlioz também encontra na literatura e na crítica um canal de ativismo estético, e sua produção é pródiga nesse campo: escreveu desde suas memórias a ensaios sobre estética musical. Seu tratado de orquestração, até hoje um clássico exemplar, mais que uma obra técnica, é uma obra sobre estética, sobre a linguagem musical e sobre o Zeitgeist romântico. Por isso, vê-se que, nas coisas sérias, ele retoma a lucidez e reencontra o rigor intelectual.

 

Sua música é o espelho de sua personalidade, principalmente no que se refere à inventividade melódica e ao virtuosismo orquestral, suas características principais. Sua impetuosidade criativa, associada ao brilho sinfônico, desenvolve, no campo da construção melódica, a sua percepção das possibilidades rítmicas e melódicas dos instrumentos da orquestra, o que fez dele uma das referências para a orquestração moderna. Até seu ativismo parece se refletir em sua música, na medida em que recorre frequentemente ao emprego de ideias fixas, ou temas característicos, dotados de valor simbólico, que anunciam o Leitmotiv de Wagner.

 

É natural que tal personalidade impulsiva e um tanto egocêntrica não fosse muito resiliente ao fracasso. No entanto, Berlioz sofreu três. Três vezes fracassou em ganhar o Grande Prêmio de Roma até que, em 1830, o conquistou. Tratava-se de um concurso de composição, dificílimo, no qual, em uma das provas, se deveria criar, em curto lapso de tempo, uma obra original, proposta pela comissão julgadora. Como prêmio, o compositor, entre outras coisas, era convidado a passar uma temporada na Itália, na Villa dos Medici, para dedicar-se inteiramente a seu trabalho.

 

Berlioz concorreu quatro vezes, com quatro cantatas: La Mort D’Orphée, Herminie, Cléopâtre e Sardanapale. Passou de 1831 a 1832 na Villa dos Medici, não por Cleópatra, mas por Sardanapale. Cleópatra foi uma daquelas tentativas fracassadas. No entanto, o interesse pela obra ressurgiu no século XX e hoje é uma de suas obras que mais desperta curiosidade e admiração entre intérpretes e o público, tendo se tornado peça quase obrigatória no repertório das vozes mezzo-soprano.

 

Composta em 1829, mas estreada apenas muitos anos depois, quando Berlioz a conduziu em alguns concertos que fez pela Alemanha, essa Cena Lírica Dramática (como o compositor a designou), com texto de Pierre-Ange Vieillard, assombrou o júri do Grande Prêmio de Roma por sua ousadia. É que Berlioz, como sempre, se afirmava em sua liberdade, sua personalidade criativa e seu próprio estilo, o que fez dessa obra um importante legado para os anos que viriam.

 

Moacyr Laterza Filho
Pianista e cravista, Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa, professor da Universidade do Estado de Minas Gerais e da Fundação de Educação Artística.

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