Concerto para piano nº 2 em Lá maior

Franz Liszt

Um primeiro golpe de vista sobre a figura e a obra de Franz Liszt pode deixar entrever um aparente paradoxo: de um lado, o pianista prodigioso, que faz de si e de muito de sua obra mero espetáculo, assombroso, por certo, como assombrosos são os malabarismos mais difíceis de todo espetáculo circense. De outro lado, o artista engajado, que solidificou um novo papel social para a música e para o músico e que, generoso, ajudou a divulgar as obras de seus contemporâneos, mesmo quando lhe guardavam desavenças pessoais ou ideológicas. De um lado o show man, capaz de gerenciar a si e à sua obra como negócio rentável e, de outro, o grande professor ambicionado e requisitado, que orientou talentos como os de Grieg e Smetana. Um homem que, na juventude, professa o ateísmo, mas que, em idade madura, retorna ao seio da Igreja e recebe as ordens menores. Um político capaz de ser conselheiro real da Hungria e, ao que parece, agente secreto de Napoleão III. Menos que paradoxo, porém, a sua biografia irrequieta e romanesca, comparável à de Lord Byron, encarna e abraça com paixão toda a ideologia e a mitologia do Romantismo.

 

Na verdade, a figura quase sobrenatural que a História distorceu foi em parte construída pelo próprio Liszt e não sem um propósito: tomando Paganini por modelo, ele esculpe habilmente em si mesmo o grande mito do gênio romântico, cuja vida e obra estão num plano superior ao do quotidiano ordinário. No entanto, as distorções que a História nos legou acerca de uma e de outra, no caso de Liszt, mascaram a real importância, muito maior do que usualmente se faz crer, que ambas tiveram. Num plano social, Liszt consolidou uma nova posição para a música e para o papel do músico. No plano da linguagem musical, ele endossou e ajudou a firmar novas perspectivas formais e estéticas. Na música que compõe ao final da vida, sua linguagem anuncia o atonalismo, antevendo um futuro que se concretizaria pelo menos duas gerações mais tarde.

 

A obra de Liszt, de prodigalidade rara entre os compositores românticos, reúne mais de setecentos títulos, tomando-se como apenas um, nessa contabilidade, cada uma das grandes coletâneas para piano! Também aí se pode notar um aparente paradoxo, num relance superficial: uma obra de densidade tão grande como a Sonata em Si menor pode parecer completamente destoante das cerca de trezentas paráfrases que ele faz de obras de Beethoven, Verdi, Schubert, Bach, Wagner, Strauss, dentre outros tantos compositores, contemporâneos seus ou não. Essas obras, à luz de uma primeira análise, podem parecer meros artifícios de autopromoção do grande virtuose, que, com acrobacias pianísticas, dá ao público ouvir obras de apelo popular e de gosto duvidoso. Numa análise mais cuidadosa, porém, vêem-se nessas paráfrases (às vezes versões livres, outras vezes, transcrições fiéis) obras de uma arquitetura formal irrepreensível em que Liszt demonstra a exploração máxima dos recursos do piano, legando possibilidades a compositores que delas fariam uso em linguagem totalmente diversa, a exemplo de um Debussy ou de um Ravel.

 

Em meio a essa obra tão vasta e variada, os seus dois concertos para piano e orquestra poderiam parecer apenas títulos a mais no conjunto total. No entanto, ambos são dignos de nota tanto no uso de recursos pianísticos, como é o caso do primeiro, quanto na inovação formal, a exemplo do segundo. O trabalho de criação do Segundo Concerto, em lá maior, parece ter sido dos mais laboriosos para a pródiga produtividade criadora de Liszt. Esboços dessa obra foram traçados no seu período mais intenso de pianista virtuose, durante os anos de 1839 e 1840. Uma década depois, Liszt retorna a esses esboços e lhes faz revisões contínuas e cuidadosas, dando-lhes seus traçados gerais. Essas revisões continuam mesmo após a sua estreia, em 1857 (que teve seu aluno, Hans Von Bronsart, como solista e o próprio compositor como regente), e prosseguem até 1861. O que há de relevante, neste Segundo Concerto, é o tratamento formal inovador que Liszt confere à obra: ela é constituída de um único movimento, dividido em seis grandes seções que se entrelaçam pela transformação de vários temas. De fato, quando ainda esboçado, Liszt o havia intitulado “Concerto Sinfônico” e essa perspectiva formal pode ser considerada análoga, em certo sentido, à do poema sinfônico. Assim, há, neste Concerto, certa concepção cíclica, em que os temas iniciais se metamorfoseiam no decorrer de toda obra e funcionam tanto como fator de coesão quanto como matéria-prima de elaboração musical.

 

Embora já “ensaiado” por compositores anteriores, como Beethoven, na Nona Sinfonia, e Schubert, na Fantasia Wanderer, ou pelo próprio Liszt, em obras como a Sonata em Si Menor, esse procedimento é adotado, neste Segundo Concerto, como um caminho explícito que, sem negar a tradição formal, modifica-lhe completamente as feições, propondo-lhe novas perspectivas.

 

Moacyr Laterza Filho
Pianista e cravista, Mestre em Teoria da Literatura, Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa, professor da Fundação de Educação Artística e da Escola de Música da UEMG.

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