Claude DEBUSSY
Instrumentação: 4 flautas, 4 oboés, 4 clarinetes, 4 fagotes, 4 trompas, 4 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos, percussão, celesta, 2 harpas, cordas completas.
A parceria de Debussy com os Balés Russos do ousado diretor Sergei Diaghilev resultou em duas peças sinfônicas coreografadas e apresentadas por Nijinsky – o Prelúdio para “A tarde de um fauno” e o poema dançado Jeux. Hoje, um século depois, essas duas obras (libertas de suas incertas carreiras cênicas) constituem peças fundamentais do repertório sinfônico e não se pode mais negar a influência decisiva que exerceram sobre a música contemporânea. Cronologicamente, ocupam posições estratégicas na obra de Debussy e na construção da modernidade musical.
Há um consenso didático em assinalar a estreia do Prelúdio para “A tarde de um fauno”, no mês de dezembro de 1894 (o balé de Nijinsky é de 1912), como um marco para o início da música “moderna”. A novidade do Prelúdio torna-se mais flagrante diante de outras grandes obras compostas no mesmo período, como as sinfonias Novo Mundo, de Dvorák (1893), a Patética, de Tchaikovsky (1893) e a Segunda de Mahler (1894). Debussy afasta-se dos recursos clássicos da exposição e do desenvolvimento temáticos e realiza uma espécie de amálgama de vários procedimentos composicionais. Abandonando o discurso narrativo tradicional (relacionado à prosa coerente, dominada pela consciência), o compositor adota um simbolismo poético, em que as curvas e movimentos melódicos associam-se à livre imaginação e ao reinado dos sonhos. O efeito total é o de uma improvisação organizada, construída – as oscilações de andamento, a irregularidade dos ritmos, a sofisticação da harmonia, tudo contribui para criar uma atmosfera onírica. Dessa maneira, o rompimento radical com o passado dá-se no campo da sintaxe, tratada de forma “intuitiva”, sem apego à gramática tradicional – a escuta musical estava, assim, definitivamente alterada.
Última obra orquestral de Debussy, Jeux (Jogos) foi representada no dia 15 de maio de 1913 no teatro Champs-Elysées. A recepção foi fria, marcada pela indiferença do público, principalmente se comparada à tumultuada estreia, duas semanas depois, na mesma sala, do grande espetáculo da temporada, A sagração da primavera, de Stravinsky. Negligenciada durante muito tempo, Jeux é atualmente encarada como uma das principais obras da música do século XX e sua novidade é de tal ordem que continua a gerar discussões.
Jeux teve como argumento-roteiro o balé “cubista” de Nijinsky, cujo título, Jogos, seria um eufemismo para as intrincadas relações de um triângulo amoroso (segundo declarações do próprio Debussy a Stravinsky). Espécie de “balé de câmara”, com apenas três personagens, Jeux presta homenagem à Juventude e à Beleza enquanto faz a “apologia plástica do homem de 1913” (nas palavras de Diaghilev), com seus símbolos da Modernidade. Refletores elétricos iluminam o jardim onde um rapaz e duas moças, em uniformes esportivos, carregando raquetes, desenvolvem passos e gestos estilizados, inspirados no jogo de tênis. A procura de uma bola perdida serve de pretexto para flertes, buscas, desencontros, perseguições, brigas, confidências, beijos, carícias… Até que o clima de sutil erotismo, coreografado com lirismo, é interrompido pelo aparecimento de outra bola, jogada por mão maliciosa e oculta. Surpreendidos e amedrontados, o rapaz e as duas moças desaparecem na obscuridade noturna do parque.
Do ponto de vista formal, a partitura de Jeux liga-se diretamente à ação dançada em cena. Música de gestos, portanto, e daí seu aspecto de perpétua transformação, valorizando cada segundo de um tempo conscientemente irreversível. Cria-se uma nova noção de desenvolvimento temático: Debussy usa pequenos motivos derivados do impulso rítmico de uma valsa, combinando-os de maneira extremamente flexível. Esses micromotivos expandem-se em ornamentações, digressões e metamorfoses, ou se dispersam em fragmentos independentes, sendo substituídos por outros que, muito secretamente, guardam algum tipo de aliança com os anteriores. Jogos de mosaicos que se renovam imediatamente e que exigem do ouvinte uma audição igualmente instantânea, entregue sem resistência à sua magia sonora.
A orquestração é elemento decisivo e estrutural na composição de Jeux. Ela não se limita a “revestir” as ideias musicais, mas é a sua própria concreção, na medida em que os timbres instrumentais, individualizados e articulados entre si, sobrepostos em camadas independentes e polirrítmicas, criam uma espécie de polifonia e de contraponto tímbricos. Usando os instrumentos habituais da orquestra sinfônica romântica, Debussy foi capaz de criar um mundo de sonoridades até então inexistentes, onde não há lugar para gestos grandiloquentes nem para figuras meramente retóricas. A peculiaridade, a novidade e o fascínio desses Jogos residem, sobretudo, em sua maneira única de existir enquanto timbre, enquanto cor instrumental.
Poucos músicos mostram-se, como Debussy, tão capazes de constante renovação. Suas inúmeras obras-primas mostram faces diversas e, sob vários aspectos, contraditórias. Inovam sempre e sinalizam caminhos inesperados. Revelam um pensamento sonoro totalmente novo, com um potencial de juventude sempre retomado, de impacto decisivo e duradouro. Por essa capacidade de renovação, que certamente confundia seus contemporâneos, Debussy insere-se na definição de Baudelaire para a modernidade, vista como o transitório, o fugaz, o contingente; a metade da arte, cuja outra metade é o eterno e o imutável.
Paulo Sérgio Malheiros dos Santos
Pianista, Doutor em Letras pela PUC Minas, professor na Universidade do Estado de Minas Gerais, autor do livro Músico, doce músico.