Jeu de cartes

Igor STRAVINSKY

(1936/1937)

 

Instrumentação: 2 flautas, 2 oboés, 2 clarinetes, 2 fagotes, 4 trompas, 2 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos, percussão, cordas.

 

A estreia do balé Jeu de cartes realizou-se no Metropolitan Opera House, de Nova York, em abril de 1937, sob a direção do compositor. Pela primeira vez um bailado de Stravinsky não estreava em Paris. Na capital francesa, somente a música fora apresentada e, na ocasião, o compositor declarou que seus bailados possuíam “sua natural razão de ser musical e que por isso podiam ser interpretados e apreciados em concerto, libertos do contexto coreográfico ou lírico e independentemente dele”.

 

As obras coreográficas de Stravinsky estão entre as mais representativas do seu gênio e revelam o melhor de seu talento orquestral. Libertas de suas incertas carreiras cênicas, algumas se tornaram peças fundamentais do repertório sinfônico moderno e não se pode mais negar a influência decisiva que exerceram sobre a música contemporânea.

 

Com três grandes balés sinfônicos – O Pássaro de Fogo, Petrushka e A Sagração da Primavera – Stravinsky se impôs, entre 1910 e 1913, como um dos criadores mais radicais do século XX, consolidando algumas de suas pesquisas inovadoras – a valorização dos instrumentos de sopro e de percussão, a justaposição de melodias, o politonalismo, a poderosa engrenagem rítmica e a simplificação sistemática da construção musical.

 

Ao longo de sua carreira, a insaciável curiosidade musical de Stravinsky estabeleceu uma forma muito particular de comunicação com um abrangente legado de gêneros e períodos históricos diversos – do canto gregoriano ao jazz, de Guillaume de Machault a Anton Webern. Visando o que havia de prospectivo nesse acervo, o compositor soube dele extrair consequências musicais imprevisíveis e personalíssimas. Os bailados acompanharam as várias etapas criativas do compositor, com a multiplicidade de seus estilos e tendências estéticas. Por exemplo, em Renard (Raposa), de 1915, encontram-se recitativos acompanhados, no estilo da Ars Nova medieval, enquanto A História do soldado (1918) inclui em seus números um tango, um paso doble e um ragtime. No precioso Orfeu (1947), a perfeição suprema da antiguidade grega associa-se à escolha dos modelos – Monteverdi (1567-1643) e Anton Webern (1883-1945). O último balé de Stravinsky, Agón (Combate, em grego), escrito em 1957, consagra a adesão do compositor à escrita dodecafônica (visualmente traduzida em doze bailarinos) e, ao mesmo tempo, celebra o universo modal, evocado pelo ritmo de danças antigas, como a branle, a galharda ou a sarabanda.

 

Durante uma viagem aos Estados Unidos, em novembro de 1935, Stravinsky recebeu de George Balanchine, coreógrafo do American Ballet, a encomenda de um novo bailado. Tendo total liberdade para escolher o tema, o compositor, que apreciava muito certos jogos de azar, encontrou no pôquer inspiração para Jeu de cartes, cujo libreto elaborou com seu filho Teodoro e o amigo M. Malaiev. Os dançarinos representam um curinga e as sequências dos quatro naipes. A partitura articula-se em três movimentos – três “jogadas” – mas o jogo é feito sem interrupção, de forma que a música pareça fluir de um só fôlego. As diversas combinações entre as cartas oferecem ricas possibilidades coreográficas e composicionais, com a vantagem, segundo Stravinsky, de eliminar os tutus, assim como os pas-de-deux e outros números do tradicional balé romântico. As habituais intrigas amorosas são substituídas por uma batalha – o Curinga vilão, que complica as partidas trapaceando e pretendendo substituir qualquer outra carta, no final será derrotado por um royal flush de copas. Tendo em vista a crise política europeia, o compositor vislumbrou certo simbolismo nessa disputa entre as cartas e acrescentou à partitura uma epígrafe, retirada da fábula de La Fontaine, Os lobos e as ovelhas: — como poderá haver paz, se não podemos confiar em nossos inimigos? Pois no mau que se diz arrependido não se deve acreditar antes de uma boa prova.

 

Em dezembro de 1935, de volta a Paris, entusiasmado com o argumento, o compositor anotou sete temas, escolhendo um como a assinatura musical da peça. Elemento unificador, esse alegre “motivo dos trombones” assinala o começo de cada uma das três jogadas e reaparece na conclusão do jogo. Seguindo o princípio aleatório sugerido pelo jogo das cartas, Stravinsky combina eventualmente, ao longo de todo o bailado, várias ideias melódicas, rítmicas e harmônicas. Ocasionais soam também as citações de vários compositores, em reminiscências que vão de Beethoven a Ravel, passando por J. Strauss e Rossini. No entanto, não se trata de simples colagem ou de um previsível pout-pourri – a originalidade típica de Stravinsky permanece intacta e seu jogo sempre pode surpreender.

 

A primeira jogada compreende um Pas d’action, a Dança do Curinga, uma Valsa e uma Coda. Em alguns momentos, o desenho das linhas melódicas lembra e homenageia Tchaikovsky.

 

A segunda “mão” tece uma série de cinco Variações sobre uma marcha cujo tema reaparece, brevemente, antes de um Final bastante desenvolvido. A quarta variação inclui o tema de O morcego, de Johann Strauss.

 

A última jogada apresenta uma Valsa-minueto (com reminiscências de La valse de Ravel); um Presto, correspondente ao combate entre as Espadas e as Copas (com o tema da abertura do Barbeiro de Sevilha); e a Dança final, celebrando o triunfo do naipe de Copas, com uma orquestração fulgurante.

 

Paulo Sérgio Malheiros dos Santos
Doutor em Letras, Professor da Escola de Música da UEMG, autor do livro Músico, doce músico

anterior próximo