Sinfonia em ré menor

César Franck

(1888)

Instrumentação: 2 flautas, 2 oboés, corne inglês, 2 clarinetes, clarone, 2 fagotes, 4 trompas, 4 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos, harpa, cordas.

 

Aos treze anos, César Franck mudou-se para Paris, levado pelo pai, que ambicionava para o talentoso filho uma rentável carreira de pianista. Entretanto, o menino tímido, retraído e avesso aos palcos acabou descobrindo sua verdadeira vocação ao frequentar as classes de órgão no Conservatório.

 

Como organista de igreja, César Franck levava uma vida metódica. Profundamente religioso, exercia seu trabalho como uma missão; dava aulas particulares e compunha regularmente, sobretudo obras corais e peças para o órgão, transformado em confidente cotidiano. Aceitou com imensa satisfação o cargo de organista titular da igreja de Sainte-Clotilde, onde um instrumento maravilhoso, construído por Cavaillé-Coll, correspondia à sua inigualável maestria de intérprete e improvisador. O reconhecimento público traduzia-se na gratidão dos fiéis e dos músicos que frequentavam a igreja para ouvi-lo. Entre outros, Franz Liszt, admirador incondicional, cuja influência foi fundamental para César Franck, principalmente quanto à elaboração da forma cíclica presente em todas as suas obras-primas finais. As preferências modelares do compositor belga continuaram sendo Bach e Beethoven, mas ele soube contemporizá-las, de maneira muito pessoal, com seu gosto pelo cromatismo e pelas modulações incessantes.

 

Aos cinquenta anos, César Franck foi nomeado professor de órgão pelo Conservatório de Paris. Sob o pretexto de ensinar o instrumento, suas aulas transformaram-se em verdadeiras classes de composição para uma geração de alunos que o adoravam. Era o começo de um reconhecimento público tardio e que só se consolidou após sua morte. Por longo tempo condenado à obscuridade, César Franck habituara-se a longas reflexões; tornou-se extremamente meditativo, meticuloso e exigente como compositor. Em seus últimos anos, dedicava-se de cada vez a um gênero para, nele, lapidar apenas uma e definitiva obra-prima. Assim surgiram o Quinteto para piano e cordas (1879), as Variações sinfônicas (1885), o Quarteto em Ré Maior (1889), o Prelúdio, coral e fuga (1884), a Sonata para violino e piano (1886) e a Sinfonia em ré menor (1888). A importância histórica dessas obras é enorme – elas foram decisivas para a mudança do cenário musical parisiense, indiferente ou até hostil à música instrumental sinfônica e camerística.

 

Sob tal aspecto, a Sinfonia de César Franck marca um ponto culminante na renovação da música orquestral francesa do final do século XIX. Foi elaborada dentro dos princípios cíclicos – a semelhança entre os elementos básicos (motivos intervalares e rítmicos) dos temas de todos os movimentos cria uma sintonia entre as seções, dando maior unidade à composição.

 

O primeiro movimento, Lento – Allegro non troppo, centrado em duas tonalidades de base – ré menor e fá menor – deixa-se marcar por muitas modulações. Suas melodias predominantemente cromáticas circulam por vários campos tonais, tornando o discurso sonoro bastante dinâmico. Inicia-se com a apresentação, nas cordas graves, de um dos temas-chave da obra, em ré menor, sombrio e interrogativo. A essa ansiosa indagação respondem os violinos, com uma melodia melancólica, porém mais expansiva. Um crescendo conduz ao Allegro non troppo. Há uma repetição de todo o material, agora em fá menor. Na sequência dessa reprise, os violinos e as madeiras agudas apresentam um dos temas mais marcantes da Sinfonia, o que se convencionou chamar Motivo da Fé. O desenvolvimento combina ousadamente os vários temas, alternados, modulados, modificados. Um desenho descendente dos violinos e das violas conduz à reexposição, quando as cordas graves, em trêmulos, apoiam a reapresentação do tema Lento inicial pelos metais. A reexposição termina com um coral entregue aos sopros. A coda, condensando os principais motivos, conclui o movimento de maneira apoteótica, em Ré maior.

 

Ao longo do Allegretto, o andamento mantém-se inalterado, mas esse segundo movimento apresenta um duplo caráter, de forma a cumprir habilmente os papéis do Andante e do Scherzo das sinfonias clássicas. Divide-se, assim, em duas seções, absolutamente simétricas quanto ao número de compassos. A primeira inicia-se com o melancólico canto confiado ao corne inglês, em clima de intensa poesia, sobre os pizzicatti das cordas e os acordes da harpa. O episódio correspondente ao Scherzo se apresenta sobre o trêmulo das cordas e tem a melodia central introduzida pelo clarinete, com ritmos pontuados. A parte conclusiva estabelece um diálogo apaixonado dos temas apresentados e, após suas elaboradas modulações, o movimento se encerra sobre o acorde de Si bemol maior.

 

O Finale – Allegro non troppo foi concebido dentro da forma sonata. Mas, seguindo o princípio cíclico, recapitula motivos dos movimentos precedentes, transfigurados em suas novas funções e acrescidos de outras ideias adjacentes. A enorme coda transforma-se numa síntese dos principais temas de toda a Sinfonia, reapresentando inclusive o Motivo da Fé do Allegro inicial. A rica orquestração e a tonalidade de Ré maior levam a uma conclusão grandiosa, repleta de alegria.

 

Paulo Sérgio Malheiros dos Santos
Pianista, Doutor em Letras, professor na UEMG, autor dos livros Músico, doce músico e O grão perfumado – Mario de Andrade e a arte do inacabado. Apresenta o programa semanal Recitais Brasileiros, pela Rádio Inconfidência.

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