Haroldo na Itália, op. 16

Hector Berlioz

Hector Berlioz dedicou-se quase exclusivamente à música orquestral. Suas três óperas foram incompreendidas pela mediocridade do gosto musical parisiense (de uma época em que imperavam Adolphe Adam e Meyerbeer) e continuam como raridades, distantes do repertório permanente. Em sua vasta obra vocal, cantatas religiosas ou coros profanos, a voz aparece como componente instrumental, a exemplo da Nona Sinfonia de Beethoven. E Berlioz quase nada nos legou para solos ou música de câmara, mesmo porque, entre todos os grandes compositores, foi o único que não dominava qualquer instrumento. Seu instrumento é a orquestra e ele a usou de maneira revolucionária.

 

Por outro lado, Berlioz foi também um grande escritor, brilhante crítico musical, cronista espirituoso. Fez de sua vida um romance tempestuoso e ainda soube reinventá-la em suas admiráveis (mas pouco confiáveis) Memórias. Transformou sua obra em um gesto autobiográfico. Compôs sempre estimulado por impressões literárias, organizando sua música como ilustração de um texto ou enredo poético. A montagem sequencial de suas obras se sujeita a essas interferências programáticas (associadas a recordações, sonhos, reflexões pessoais) que dão ao discurso musical o aspecto de colagem, como em um flash-back cinematográfico. Entretanto, por mais deliberadamente ilustrativa que seja sua gênese, a música de Berlioz impõe-se por qualidades especificamente musicais. Destacam-se, entre outras, a preocupação com a distribuição espacial dos blocos sonoros orquestrais; o uso de um tema recorrente ao longo de toda uma peça (a idée-fixe), o que possibilita uma ampliação da forma sonata; a prodigiosa riqueza de ideias melódicas e a capacidade de explorá-las pela orquestração mais adequada.

 

O título sinfonia, com que designou quatro de suas obras (Sinfonia fantástica e Lélio ou A volta à vida, Haroldo na Itália, Romeu e Julieta e Sinfonia Fúnebre), deve ser visto com reservas – refere-se mais à importância da orquestra nessas peças e a uma evidente, embora muito particular, assimilação da forma da sonata clássica. Sob esse aspecto, Haroldo na Itália ainda causa divergências. Poderia ser visto como um concerto para viola e orquestra – mas o solista atua de forma concertante, não possui cadências e seu papel, no último movimento, é muito reduzido. Para outros analistas, trata-se de um poema sinfônico – como sugerem os subtítulos dos movimentos, unidos pela idée-fixe evocativa do personagem central. Mas, como queria a denominação do compositor, a obra também remete à estrutura de uma sinfonia beethoveniana, em seus quatro movimentos:

 

1 – Haroldo nas montanhas (Adagio, Allegro). Apresenta o contaste entre o tema sombrio, lento e sonhador da viola (Haroldo) e o Allegro repleto de felicidade (a Itália). No decorrer da obra, a viola representará a subjetividade do protagonista romântico, enquanto a orquestra desenha o mundo palpável, a paisagem, as montanhas, a estrada, a procissão com os sinos e as balas que matarão o viajante solitário.

 

2 – Marcha dos peregrinos cantando as preces da tarde (Allegreto). Evoca uma procissão de peregrinos no campo – os passos se aproximam, chegam ao primeiro plano e se afastam. Após suaves harmonias das trompas e madeiras, a Marcha aparece nas cordas. Cada repetição desse canto faz-se acompanhar do toque de dois sinos, efeito particularmente belo, genial. O sino menor soa no flautim, no oboé e na harpa. O segundo, maior e profundo, ressoa dissonante, nas trompas.

 

3 – Serenata de um camponês dos Abruzzi à sua amada (Allegro assai). Estruturalmente, substitui o scherzo sinfônico. Oboé e piccolo imitam as pequenas flautas dos camponeses e, na parte intermediária do movimento, o corne-inglês faz sua serenata em longa melodia. Certamente, Berlioz inspirou-se em recordações de sua viagem a essa região da Itália, em 1833.

 

4 – Orgia dos bandidos (Allegro frenetico). Furiosos efeitos orquestrais e colisões rítmicas caracterizadores da festa dos salteadores antecedem a recapitulação dos movimentos anteriores. No final, dois violinos e um violoncelo, nos bastidores, evocam a Marcha dos peregrinos. A viola canta ainda, com sua voz melancólica, até ser silenciada pela conclusiva fúria orquestral.

 

A obra de Berlioz, aliando a fantasia prodigiosa ao mais rude realismo, é o correspondente musical dos romances e dos poemas de Victor Hugo e da pintura de Delacroix. Grande músico do romantismo francês, ridicularizado por seus contemporâneos, Berlioz tornou-se o elo especular entre os alemães Beethoven e Wagner – o compositor sinfônico e o compositor de teatro por excelência. A afirmativa é de seu conterrâneo Pierre Boulez, para quem Berlioz prende-se à forma mais emocional do romantismo alemão, estabelecendo uma voluntária confusão entre o real e o imaginário.

 

Paulo Sérgio Malheiros dos Santos
Pianista, Doutor em Letras, professor de Música da UEMG, autor do livro Músico, doce músico.

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