Franz Liszt
Em 1848, Liszt interrompeu sua triunfal carreira de concertista para instalar-se em Weimar, onde desenvolveu um trabalho extremamente fecundo como compositor, organizador de festivais, de concertos e óperas, responsável absoluto pela vida musical da cidade. Seus programas incluíam obras do passado próximo (Mozart, Schubert, Beethoven); os compositores mais significativos do presente (às vezes sem levar em conta suas simpatias pessoais); e jovens músicos (alguns descobertos com critério quase profético). Liszt empenhou-se na enorme tarefa de promoção da “música do futuro”, representada, sobretudo, pelo trabalho de três contemporâneos – Berlioz, o próprio Liszt e Wagner. Esses vanguardistas viam nas obras de Beethoven os pilares e a origem da renovação na Música, tanto no campo técnico como no expressivo. Liszt reafirmou-se como o maior intérprete do músico de Bonn e, no que se refere às Nove Sinfonias, o estudo que delas fez ficou demonstrado em suas transcrições pianísticas. Para o compositor húngaro, o gênero atingira os limites da perfeição na obra dos clássicos vienenses – Haydn, Mozart, Beethoven – e seria, portanto, impossível avançar musicalmente sem percorrer outros caminhos. Por isso mesmo, em toda sua produção (e não apenas na orquestral) encontramos a recusa sistemática da forma sonata, que o gênio de Beethoven tanto impulsionara.
Em Weimar, Liszt organizou três festivais Berlioz (1852, 1855 e 1856) e o novo contato com a obra do compositor francês (particularmente a Sinfonia Fantástica) lhe revelou a possibilidade de compor para orquestra contornando o quase inevitável modelo beethoveniano. Para substituir os sistemas preestabelecidos de organização formal, os dois inovadores cultivaram a ideia do poematismo – o princípio gerador do poema sinfônico – ou seja, a ordenação do discurso sonoro pela lógica motriz de ideias, fatos ou caracteres extramusicais. Cada obra exigia assim uma nova forma, específica, conformada ao seu conteúdo, alheia à tensão tonal e à simetria clássicas.
Foi também através de Berlioz que Liszt conheceu a obra-prima de Goethe. O caráter sinistro da legenda faustiana impressionou profundamente o grande pianista, que tinha na religiosidade um dos traços marcantes de sua personalidade. Por outro lado, a magia de seu excepcional virtuosismo, tal como o de Paganini, frequentemente era associada a um pacto diabólico, e Liszt já fora descrito como um “Mefistófeles em vestes de abade”. A princípio, o compositor cogitou escrever uma ópera, com libreto de Dumas ou Nerval. Finalmente, em 1854, escreveu a Sinfonia Fausto no incrível prazo de dois meses, após reflexões lentamente amadurecidas. A obra somente estreou três anos depois (Weimar, 5 de setembro de 1857) e, para a ocasião, Liszt acrescentou, como Coda, o Chorus mysticus, com o texto retirado do final da segunda parte do drama de Goethe. A versão completa da sinfonia foi então dedicada a Berlioz.
Conforme o título original, Uma sinfonia sobre Fausto em três retratos psicológicos, trata-se de um tríptico de poemas sinfônicos. Cada uma das partes evoca os protagonistas da obra de Goethe –Fausto, Margarida e Mefistófeles –, retratando-os individualmente. Ao mesmo tempo, uma relação musical profunda de trocas e lembranças temáticas se estabelece entre os três movimentos e esse caráter cíclico confere sólida unidade à Sinfonia, ampliando o significado expressivo das relações afetivas dos personagens.
Fausto é retratado musicalmente por temas alusivos aos seus múltiplos traços humanos, suas contradições e interrogações metafísicas: o primeiro tema (Lento assai) distingue-se pelo cromatismo exacerbado e enigmáticas incertezas tonais. O segundo (Allegro agitado) transmite, de modo agressivo, a impaciência do personagem. O tema seguinte, ao contrário, traz alguma paz, evocando a força do amor com um desenho descendente nos oboés e clarinetes. O quarto tema, espécie de marcha triunfal nos metais, possui acentos heroicos. A aparente desordem temática é sabiamente controlada, e o desenvolvimento, muito livre, faz com que todos esses desenhos melódicos se interpenetrem.
A segunda parte (Andante soave) corresponde à heroína Margarida. O traço musical que lhe define a ternura, a simplicidade e a inocência é uma bela melodia confiada ao oboé, em sugestivo duo com os arpejos da viola. Há momentos mais puramente descritivos, como quando a música evoca, leve e graciosa, a sequência da margarida despetalada pela jovem apaixonada. Mais sutis, outros efeitos fazem referência ao material temático da primeira parte para sugerir a lembrança de Fausto nos pensamentos de Gretchen. Na conclusão, repete-se o tema melódico da heroína, de forma concisa e confiado ao quarteto de cordas.
Mefistófeles é o espírito da negação que, por natureza, nada cria. Liszt não lhe atribuiu, portanto, nenhum tema. De forma genial, o compositor contentou-se em emprestar ao Negador os motivos de Fausto (distorcidos, caricaturados, ridicularizados) para serem enfrentados e vencidos pelo inefável tema de Margarida (trompa e violoncelo). O último movimento culmina com um coro masculino, espiritualmente contemplativo – o tenor solo retoma o motivo principal de Gretchen, para cantar a vitória do Eterno Feminino sobre os conflitos terrestres e humanos, redimindo-os em uma apoteose mística.
Paulo Sérgio Malheiros dos Santos
Pianista, Doutor em Letras, Professor na UEMG, autor dos livros Músico, doce músico e O grão perfumado: Mário de Andrade e a arte do inacabado. Apresenta o programa semanal Recitais Brasileiros, pela Rádio Inconfidência.