Sinfonia nº 4 em Sol maior

Gustav MAHLER

(1892/1900, revisão 1901/1910)

Instrumentação: 2 piccolos, 4 flautas, 3 oboés, corne inglês, 3 clarinetes, clarone, 3 fagotes, contrafagote, 4 trompas, 3 trompetes, tímpanos, percussão, harpa, cordas.

 

Basta um ligeiro bosquejo cronológico sobre certas figuras emblemáticas da História da Música, para situar Gustav Mahler numa posição limiar: ele nasce onze anos após a morte de Chopin e apenas quatro anos após a de Schumann. Wagner ainda vivia e, quando veio a falecer, Mahler contava com vinte e três anos. Três anos depois morre Liszt, a quem Brahms sobrevive onze anos. Debussy nasce dois anos depois de Mahler; Busoni, seis; Schoenberg, quatorze; Stravinsky, vinte e dois; Webern, vinte e três; Berg, vinte e cinco. Uma breve análise dessa cronologia faz notar que a fase produtiva de Mahler corresponde, no fio da História, a um momento de profundas transformações estéticas e ideológicas que norteariam a grande revolução por que passa a linguagem musical na virada do século XIX para o século XX.

 

Talvez venha daí a amarga idiossincrasia de alguns estudiosos em relação a sua obra: ela está dividida entre as duas eras, assim como sua personalidade, retalhada por intensos conflitos psicológicos. Mahler nunca abandona de todo os fundamentos que embasam a linguagem romântica. Sem nunca pretender negá-los, transcende muitas vezes a eles, numa espécie de continuísmo da tradição romântica alemã (de que Wagner é símbolo), chegando a tangenciar bem de perto aquela espécie de expressionismo que, na Segunda Escola de Viena, tem seu exemplo mais claro em Alban Berg. Se Mahler poderia ser visto, assim, como um elo entre Wagner, Bruckner e a Segunda Escola de Viena, sua obra, posto que contenha elementos genuínos da “nova música”, não a abraça franca e plenamente: é assombroso o contraste que se observa entre uma obra como a sua e a de um Debussy (cuja fase produtiva corresponde cronologicamente à de Mahler), que busca e encontra caminhos até então insuspeitos para a linguagem musical.

 

Some-se a essa idiossincrasia ainda outro elemento: Mahler foi, antes de tudo, um grande regente, formador de uma escola da qual o lendário Bruno Walter (que foi seu assistente) é herdeiro direto. Essa carreira teve consequências claras em sua produção artística: tendo regido de Gluck a Richard Strauss, passando por Verdi, Puccini e quase toda a obra de Wagner, Mahler renovou a Ópera de Viena e fez dela uma das grandes referências da Europa. Esse contato eclético com linguagens tão distintas – e tão diferentes da sua própria – talvez se possa ver refletido em sua obra, o que ainda desperta censuras por parte de seus maiores críticos, que não veem, também nisso, um elo com certas tendências da própria música do século XX. No entanto, se sua obra foi passível de críticas ou foi mesmo capaz de causar aversão a algumas tendências estéticas ou musicológicas, ela nunca pôde ser ignorada: concorda mesmo aquele a quem não agrada a música de Mahler que ela nunca é vulgar.

 

Mahler compôs nove sinfonias e diversos esboços para uma décima. Das nove sinfonias completas, as de números 2, 3, 4 e 8 têm a participação mais ou menos importante da voz humana, seja solista, seja em grupos corais. Costuma-se dividir o ciclo completo dessas obras em dois grandes grupos: de um lado, aquele constituído pelas quatro primeiras, às quais se costuma denominar Sinfonias Wunderhorn, por fazerem referência direta ou indireta a um ciclo de poemas e canções populares alemães (Des Knaben Wunderhorn – literalmente: “A Trompa Maravilhosa do Rapaz”); de outro lado, as cinco restantes. De fato, muitos dos temas que aparecem nas sinfonias de 1 a 4 baseiam-se em canções dele próprio, cujos textos vêm desse ciclo de poemas. Exemplo disso é a Quarta Sinfonia (composta entre 1899 e 1901), cujo último movimento incorpora uma canção, com texto extraído daí: Das himmlische Leben (“A Vida no Paraíso”).

 

Composta em 1892, citações dessa canção podem ser percebidas já na Terceira Sinfonia. Na verdade, Mahler havia pensado em utilizá-la no sexto e sétimo movimentos dessa sinfonia, mas preferiu utilizá-la, revisada, como motivo fundamental da Quarta. Nesse sentido, pode-se dizer que a Quarta Sinfonia constitui, em certo sentido, uma espécie de complementação temática do universo sonoro da Terceira. Cantado por uma voz de soprano, o texto da canção descreve a visão que uma criança tem do Paraíso. Nem assim, contudo, Mahler abandona os contrastes que prefiguram essencialmente sua linguagem, marcados por uma angústia insolúvel, perceptível, inclusive, na ternura melancólica do terceiro movimento ou no contraste entre este e a “dança macabra” sugerida no segundo. Assim, o texto que descreve a festa preparada para os justos no paraíso descreve igualmente o sacrifício da ovelha inocente. É desta forma que essa canção fornece o mote (musical e ideológico) para todos os movimentos da Quarta Sinfonia. Isso, porém, deve ser entendido menos como um “programa” literário que como linha condutora do trabalho de composição: dessa canção derivam os elementos temáticos de todos os movimentos, mas apenas no último ela é apresentada integralmente, transcendendo, assim, a proposição clássica da elaboração temática.

 

Esses e outros aspectos, alguns dos quais relativos ao próprio tratamento tonal, mostram com clareza a posição limiar que Mahler ocupa na evolução da linguagem musical do Ocidente, angustiada entre uma era que expira e outra que nasce.

 

Moacyr Laterza Filho
Pianista e cravista, Professor da Escola de Música da UEMG e da Fundação de Educação Artística.

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