Mamãe Gansa: Suíte

Maurice RAVEL

(1911)

Instrumentação: Piccolo, 2 flautas, 2 oboés, corne inglês, 2 clarinetes, 2 fagotes, contrafagote, 2 trompas, tímpanos, percussão, harpa, celesta, cordas.

 

As obras orquestrais constituem um dos aspectos mais fascinantes da criação de Ravel. Filho de um engenheiro apaixonado pela Mecânica, o compositor herdou do pai o amor pelo detalhe, pela miniatura, pela precisão artesanal do trabalho bem feito (de “um relojoeiro suíço”, como diria Stravinsky). A orquestra, para esse gênio das sonoridades, tornou-se o meio mais adequado de expressão.

 

Justamente famosas são também as transcrições que Ravel realizou de partituras originalmente destinadas ao piano, sobre obras próprias ou de outros compositores. Nesse processo, Ravel reconsidera o material inicial pensando-o em termos orquestrais, submetendo-o a uma segunda gênese, tão original como se fora uma nova obra.

 

Os cinco contos de fadas de Ma mère l’oye foram escritos para piano a quatro mãos em 1908 e orquestrados três anos depois. O título Mamãe Gansa refere-se ao livro homônimo de contos de fadas do famoso Charles Perrault, ao qual pertencem as duas primeiras peças da suíte.

 

Graves contrabaixos preparam o início da Pavana da Bela Adormecida na Floresta. O ritmo lento dessa antiga dança, embalado por um longínquo carrilhão, serve de acalanto para a princesa. Seus doces sonhos evoluem sobre uma melodia transparente, iluminada pela flauta e depois pelo clarinete. O misterioso clima medieval acentua-se com o emprego do antigo modo eólico.

 

No conto seguinte, o Pequeno Polegar vagueia no centro da floresta ameaçadora. Ele acreditava achar facilmente o caminho de casa, pois o marcara com pedacinhos de pão. Mas os pássaros comeram as migalhas. Acompanhando as hesitações do personagem, os violinos tocam uma sequência de colcheias em terças, através de constantes mudanças de compasso (2/4, 3/4, 4/4, 5/4). A melodia confiada ao oboé e, depois, ao corne inglês, parece andar a esmo. Os passarinhos fazem ouvir seus cantos, nos violinos e na flauta. A caminhada continua, até que a luz da casa se revela no último acorde, dissipando a angústia e a escuridão.

 

Na peça de Mme. d’Aulnoy, Feinha, Imperatriz dos Pagodes, a princesinha oriental apresenta sua orquestra de porcelana tocando instrumentos de nozes e conchas. Mas que riqueza de sonoridades! A marchinha usa o modo pentatônico, e a melodia emprega apenas notas que correspondem às teclas pretas do piano.

 

Em As conversas da Bela e da Fera, retiradas do conto da Condessa de Beaument, a orquestração de Ravel caracteriza a Bela com o encantador tema do clarinete, em ritmo de valsa:

 

— Quando eu penso em seu coração, você não me parece feio.

 

A Fera responde com a voz soturna do contrafagote:

 

— Sou um monstro; mas morrerei feliz, já que tive a alegria de te conhecer.

— Você não morrerá!

 

Após um crescendo que se estanca bruscamente, o glissando da harpa anuncia a quebra do sortilégio – sob os traços do monstro, estava escondido um Príncipe Encantado.

 

No movimento final da suíte, a Bela Adormecida desperta com o beijo de seu príncipe. O casal é conduzido ao esplendor de O Jardim das Fadas, que eles percorrem apaixonados, até a fascinante apoteose final.

 

Paulo Sérgio Malheiros dos Santos
Pianista, Doutor em Letras, professor na UEMG, autor dos livros Músico, doce músico e O grão perfumado – Mário de Andrade e a arte do inacabado. Apresenta o programa semanal Recitais Brasileiros, pela Rádio Inconfidência.

Obs: texto publicado no programa dos dias 14 e 15 de abril de 2016.

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