O Canto do Rouxinol

Igor STRAVINSKY

(1917)

Instrumentação: piccolo, 2 flautas, 2 oboés, corne inglês, requinta, 1 clarinete, 2 fagotes, 4 trompas, 3 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos, percussão, 2 harpas, celesta, piano, cordas.

 

O nome de Stravinsky está mais diretamente relacionado a obras de sua fase russa, particularmente aos balés Petrushka, A Sagração da Primavera e O Pássaro de Fogo. Na verdade, a extensa e multifacetada obra desse criador prolífico é pouco conhecida e o Canto do Rouxinol é, por assim dizer, uma pequena joia, extraída dos atos 2 e 3 da ópera O Rouxinol, que merece revisitações e redescobertas. Esse poema sinfônico, que ilustra e ilumina sentidos do conto original de Andersen, é uma história sem palavras, contada através de uma orquestração cheia de cores, contrastes, densidades e rarefações, claro-escuros, tutti e momentos camerísticos.

 

Já de início, estamos imersos em um universo de fantasia – uma festa no castelo do imperador da China; burburinho, intensa movimentação, fragmentos melódicos, breves gestos musicais e uma orquestração feérica, que fazem lembrar Petrushka e o colorismo orquestral de Rimsky-Korsakov. A primeira evocação do rouxinol se contrapõe a essa atmosfera: um solo de flauta emerge de um fundo de cordas, harpas e celesta. Volta a festa, apenas para uma breve conclusão com materiais musicais anteriores, após a qual tem lugar a Marcha Chinesa. Nesta, embora as cordas estejam sempre presentes, em diversos momentos atuam como coadjuvantes para um emprego preferencial dos sopros – madeiras e metais – e da percussão. O piano e a celesta têm papel relevante nessa paleta de multicores e de vivacidade rítmica, que antecede a seção dedicada ao canto do rouxinol, que agora aparece em sua plenitude. Aqui, a flauta, embora solista, é por vezes secundada pela requinta e pelo flautim, e dialoga com um violino solo, enquanto piano, celesta, harpas e as pontuações de um triângulo concorrem para uma cortina de delicadeza e transparência.

 

Mais um retorno à festa, que agora é interrompida pelo estridente anúncio de um presente do imperador do Japão: um rouxinol mecânico. O cenário para o pássaro mecânico é tingido de ironia: o protagonista principal – o oboé – é aprisionado em uma orquestração de meias-tintas que lembra uma soturna caixinha de música. Diante da preferência de todos pelo rouxinol mecânico, o verdadeiro rouxinol abandona o castelo. A melodia serena de um trompete solista, que retornará ao final da obra, precede um episódio no qual um coro de vozes graves – fagote, trombone e tuba – é entrecortado por reminiscências do canto do rouxinol mecânico. O imperador, gravemente enfermo, será salvo pelo canto do verdadeiro rouxinol, canto que novamente dialoga com a melodia do violino solo. O canto do pássaro manda embora a morte. A marcha fúnebre que o sucede é apenas a expectativa da corte diante do desenlace que não ocorrerá. O rouxinol recusa o convite para permanecer no palácio, mas promete voltar sempre para um canto noturno, até o amanhecer. O cantabile do trompete, que paira sobre cordas e harpas, traz, da ópera, a voz de um pescador e sua mensagem: o canto dos pássaros é a voz do céu. Ao encerrar, dessa forma, a música para a alegoria de Andersen – celebração da necessidade da arte –, Stravinsky surpreende o ouvinte pelo recolhimento, simplicidade e delicadeza, evocações do canto do mistério e da noite.

 

Oiliam Lanna
Compositor, professor da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais.

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